Falando da eleição, Paulo argumenta:
E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça
(Rm 11.6). A graça exclui totalmente as obras. O homem nada pode e nada tem
para oferecer a Deus por sua salvação. É o que estamos trabalhando desde o
início deste trabalho. A única coisa que lhe cabe fazer é receber o dom da
salvação, pela fé, quando esta lhe é concedida. Fé na obra suficiente de
Cristo, que lhe é imputada (creditada em sua conta) gratuitamente. Essa obra
consiste na sua vida de perfeita obediência à lei de Deus, em lugar do homem,
obediência que nem Adão, nem qualquer outro de sua descendência puderam
prestar, dada a sua condição de morte espiritual. Por isso Cristo é chamado de
o segundo ou o último Adão (1Co 15.45). Ela consiste também, e principalmente,
de sua morte sacrificial em lugar do pecador eleito, através da qual é pago o
preço exigido pela justiça de Deus para a justificação. A justiça de Deus exige
punição do pecado. Ele é aquele que "não inocenta o culpado" (Ex 34.7).
Exige justiça perfeita. Para que Deus pudesse punir o pecador, mas ao mesmo
tempo declará-lo justo (que é o significado bíblico de justificar), foi preciso
que alguém, sem culpa e com méritos divinos, assumisse o seu lugar. Foi o que o
próprio Deus fez através de Cristo. Assumiu a culpa do pecador eleito e morreu
em seu lugar, satisfazendo assim a justiça de Deus, ofendida pelo pecado. Nada
menos do que isso seria suficiente para justificar o pecador. É o que se chama
na teologia de "expiação". Desta forma, Paulo pôde falar em Deus como
"aquele que justifica o ímpio" (Rm 4.5) e da morte de Cristo como a
manifestação da sua justiça, para que ele pudesse ser justo e o justificador
daquele que tem fé em Jesus. Diz ele: "sendo justificados
gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus,
a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para
manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os
pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça
no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé
em Jesus" (Rm 3. 24 - 26). É por isso também que os reformadores chamavam
o crente de simul justus et peccator - ao mesmo tempo justo e pecador.
Esta foi a doutrina central da
Reforma. Lutero, de início, não podia compreender como a "justiça de Deus
se revela no evangelho" ("visto que a justiça de Deus se revela no
evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá pela fé". Rm 1.17).
Para ele, a justiça de Deus só poderia condenar o homem, não salvá-lo. Tal
justiça não seria "boas novas" (evangelho). Só quando compreendeu que
a justiça de que Paulo fala nesse texto não é o atributo pelo qual Deus
retribui à cada um conforme os seus méritos (o que implicaria em condenação
para o homem), mas o modo como Ele justifica o homem em Cristo, é que a luz
raiou em seu coração e a verdade aflorou em sua mente. Tornou-se, então, um
homem livre, confiante e certo do perdão dos seus pecados. Compreendeu o
evangelho! O Evangelho é a manifestação dessa justiça de Deus, que é recebida
somente pela fé. Não é produzida pelas obras, pois o homem não as tem.
("Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em
razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado"...
"concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente
das obras da lei" Rm 3.20, 28).
É pela fé que o justo viverá.
Quando Paulo cita esta passagem de Habacuque, ele a usa para ensinar que é
através da fé, e não das obras, que alguém é declarado justo em Cristo.
Isto está mais claro na outra citação em Gl 3.11, quando ele diz: "E
é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo
viverá pela fé". Cristo é a justiça de Deus ("mas vós sois
dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria,
e justiça, e santificação, e redenção" - 1Co 1.30) e pela fé nele nós
também somos feitos "justiça de Deus" ("Aquele que não conheceu
pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de
Deus" (2Co 5.21). A fé, todavia, é apenas o meio, dado pelo próprio Deus,
pelo qual essa justiça é imputada ao pecador, não a sua causa ou motivo. Do
contrário, a própria fé seria "obra humana". Per fidem propter Christum -
"pela fé, por causa de Cristo", como deixou claro a Reforma. A fé não
é a base nem a causa meritória da justificação, mas o meio pelo qual ela é
comunicada.
Quão longe estava a Igreja
dessa verdade simples do Evangelho quando ensinava que o perdão podia ser
comprado com dinheiro e a salvação adquirida com o mérito dos santos. John Tetzel,
o vendedor das indulgências do Papa Leão X na Alemanha, dizia que "ao som
de cada moeda que cai neste cofre, uma alma se desprende do purgatório e voa
até o paraíso", refrão que seus ridicularizadores rimaram no que em
português equivaleria a "no que a moeda na caixa cai, uma alma do
purgatório sai"
Mas não pensemos que a Igreja
Católica mudou. No ano 2000, considerado o do Jubileu, o Vaticano criou novas
indulgências para reduzir ou anular as penas dos pecados. Um "Manual de
Indulgência", de 115 páginas, apresenta algumas das obras que podem
aliviar a punição dos pecadores no purgatório, dentre as quais estão um dia sem
fumar, rezar com o Papa em frente à televisão, ajudar refugiados, orar
mentalmente com surdos-mudos, não comer carne, etc [2]. Além
das que são permanentemente concedidas como visitar o Vaticano e peregrinar por
lugares sagrados. Isto na mesma época em que a Igreja assinou, juntamente com
luteranos da Federação Luterana Mundial, um acordo em que os dois grupos
professam que: " a salvação decorre da graça de Deus e não das boas obras;
só se chega à salvação pela fé; e, embora não levem à salvação, as boas obras
são conseqüência natural da fé [3]".
O acordo não é levado a sério pelos que conhecem o catolicismo e o modo como age, e recebeu críticas inclusive da parte de igrejas luteranas fiéis à sua origem. É visto apenas como uma manobra para promover o ecumenismo e, principalmente, para combater o mercantilismo das igrejas neo-pentecostais, que vêm tirando adeptos das igrejas tradicionais, principalmente do catolicismo, com sua pregação da "teologia da prosperidade [4] A ênfase na doutrina da justificação somente pela fé é tão oportuna e necessária agora quanto nos dias de Lutero, e não só porque o catolicismo não mudou, mas porque o protestantismo mudou. São poucos os evangélicos hoje que ainda dão ênfase ao aspecto objetivo da justificação unicamente pela fé. Experiências subjetivas, avivamentos emocionais, respostas a apelos e outras práticas estão tomando o lugar da pregação dos temas chaves da Reforma. As doutrinas do pecado original, da expiação vicária, da eleição incondicional e da justificação somente pela fé estão sendo negadas hoje por muitos evangélicos que buscam uma acomodação à cultura da modernidade.
[1] - "Sobald das Geld im Kasten Klingt, di Seele aus dem fegfeuer springt" Artigo extraído de "Igreja Católica cria novas indulgências", Folha de S. Paulo de 19/09/2000.
[3] "Católicos e luteranos se reconciliam", da mesma edição da Folha de S. Paulo, já citada).
[4] (cf. artigo "Acordo visa combater 'mercantilismo'", da referida edição da Folha de S. Paulo).
O acordo não é levado a sério pelos que conhecem o catolicismo e o modo como age, e recebeu críticas inclusive da parte de igrejas luteranas fiéis à sua origem. É visto apenas como uma manobra para promover o ecumenismo e, principalmente, para combater o mercantilismo das igrejas neo-pentecostais, que vêm tirando adeptos das igrejas tradicionais, principalmente do catolicismo, com sua pregação da "teologia da prosperidade [4] A ênfase na doutrina da justificação somente pela fé é tão oportuna e necessária agora quanto nos dias de Lutero, e não só porque o catolicismo não mudou, mas porque o protestantismo mudou. São poucos os evangélicos hoje que ainda dão ênfase ao aspecto objetivo da justificação unicamente pela fé. Experiências subjetivas, avivamentos emocionais, respostas a apelos e outras práticas estão tomando o lugar da pregação dos temas chaves da Reforma. As doutrinas do pecado original, da expiação vicária, da eleição incondicional e da justificação somente pela fé estão sendo negadas hoje por muitos evangélicos que buscam uma acomodação à cultura da modernidade.
[1] - "Sobald das Geld im Kasten Klingt, di Seele aus dem fegfeuer springt" Artigo extraído de "Igreja Católica cria novas indulgências", Folha de S. Paulo de 19/09/2000.
[3] "Católicos e luteranos se reconciliam", da mesma edição da Folha de S. Paulo, já citada).
[4] (cf. artigo "Acordo visa combater 'mercantilismo'", da referida edição da Folha de S. Paulo).
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Maique de Souza Borges, é teólogo, estudante e amante da música sacra. Membro da Igreja Assembleia de Deus em Brasília, casado e pai de um filho. Tem interesse especial pela História da Igreja. É o criador do site Cooperadores do Evangelho. Profissionalmente atua no ramo farmacêutico e brinca de músico e programador nas horas vagas.
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