Mas longe esteja de mim
gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo." (Gl 6.14)
IRMÃOS amados, o
bem-aventurado Paulo, o observador excelente dos segredos divinos, declara-nos
nas supracitadas palavras, que a cruz é a maneira certa de viver bem, é o
melhor ensinamento de como sofrer adversidade, é a escada mais firme por meio
da qual subimos ao céu por seu maior sinal. É esta que conduz seus amantes ao
país da luz eterna, da paz eterna, da bem-aventurança eterna, que o mundo não
pode dar, nem o Diabo tirar. A fraqueza humana detesta o sofrimento da pobreza,
desdém, vilania, fome, fadiga, dor, necessidade, escárnio, que muitas vezes
são sua sorte, e que pesam e perturbam os homens. Mas todas estas coisas unidas
formam, por seus sofrimentos múltiplos, uma cruz saudável, ordenando assim Deus
esta dispensação para nós. Aos verdadeiros portadores da cruz, eles abrem o
portão do Reino celestial. Essa luta para eles prepara a palma da vida; essa
conquista para eles representa o diadema de glória eterna.
Ó
cruz verdadeiramente bendita de Cristo, que sustentou o Rei do céu, e que
trouxe para o mundo inteiro o gozo da salvação! Por ti os demônios são postos
em fuga; os fracos são curados; os tímidos são fortalecidos: os pecadores são
limpos; os inativos são estimulados; os orgulhosos são humilhados; os
desumanos são tocados; e os devotos são orvalhados com lágrimas.
Bem-aventurados são aqueles que diariamente lembram a paixão de Cristo, e
desejam levar a própria cruz após Cristo. Irmãos bons e religiosos, que estão
inscritos na obediência, têm, na aflição diária de seus corpos e na resignação
de suas vontades, uma cruz que em seu aspecto exterior é pesada c amarga. Mas é
interiormente cheia de doçura, por causa da esperança de salvação eterna, e o
afluxo de consolo divino, que é prometido àqueles que são quebrantados de
coração. Se eles não a sentem imediatamente ou não a percebem, que é concedida
sobre eles passo a passo, devem contudo esperá-la com paciência e resignar-se
à vontade divina. Porque Ele sabe bem quando é o tempo de mostrar misericórdia
e qual o método de ajudar os aflitos, assim como o médico está bem
familiarizado com o ofício de curar, e o capitão do navio com a arte de
navegar. Aqueles que tomaram a cruz em seu coração têm grande confiança e
motivo de glória na cruz de Jesus Cristo. Eles não confiam nem esperam serem
salvos por méritos e obras próprias, mas pela misericórdia de Deus e pelos
méritos de Cristo Jesus, crucificado por nossos pecados, em quem eles crêem
fielmente; a quem com o coração amam, com a boca confessam, louvam, pregam,
honram e exaltam. Deus prova seus amigos pela santa cruz, se o amam
verdadeiramente ou em aparência, e se guardam seus mandamentos perfeitamente.
Eles
são provados principalmente pela tolerância às injúrias e pela remoção das
consolações internas; pela morte de amigos e pela perda de propriedade; pelas
dores de cabeça e pelos ferimentos nos membros; pela abstinência de comida e
pela aspereza das roupas; pela dureza da cama e pela frieza dos pés; pelas
longas vigílias da noite e pelas fadigas do dia; pelo silêncio da boca e pelas
reprovações dos superiores; pelos vermes que roem e pelas línguas que
depreciam. Em seus sofrimentos eles são consolados pela meditação devota da
paixão do Senhor, como muitos devotos sabem muito bem em seu coração. E deles o
provar o mel escondido na rocha, e o óleo da misericórdia que goteja da bendita
madeira da cruz santa, cujo gosto é mui delicioso; cujo odor é mui doce; cujo
toque é mui saudável; cujo fruto é mui feliz. Ó árvore da vida verdadeiramente
digna e preciosa, plantada no meio da Igreja para o remédio da alma! Ó Jesus de
Nazaré, tu que foste crucificado por nós! Tu abriste as algemas dos pecadores;
libertaste as almas dos santos; humilhaste os altivos; quebraste o poder dos
maus; consolaste os crentes; puseste em fuga os incrédulos; livraste os piedosos;
puniste os obstinados; venceste os adversários. Tu levantaste os que estavam
caídos; puseste em liberdade os que se encontravam oprimidos; feriste os que
ferem; defendeste os inocentes; amaste os verdadeiros; odiaste os falsos;
desdenhaste os carnais; prezaste os espirituais; recebeste os que vão a ti;
escondeste os que buscam refúgio em ti. Os que te clamam, tu os ouviste; os que
te visitam, tu os alegraste; os que te buscam, tu os ajudaste; os que choram a
ti, tu os fortaleceste. Tu honraste os que te honram; louvaste os que te
louvam; amaste os que te amam; glorificaste os que te adoram; abençoaste os que
te bendizem; exaltaste os que te exaltam. Aqueles que olham para ti, tu os oi
haste; os que te beijam, tu os beijaste; os que te abraçam, tu os abraçaste; os
que te seguem, tu os guiaste ao céu.
Ó
irmão religioso, por que estás triste, e por que reclamas do peso da cruz, em
longas vigílias; em muitos jejuns; em trabalho duro c silêncio; em obediência e
rígida disciplina? — cujas coisas foram instituídas à inspiração de Deus, pelos
pais santos para teu proveito e salvação da tua alma; a fim de que por eles tu
andasses com firmeza e prudentemente, tu que não podes te governar bem e virtuosamente.
Tu pensas que sem a cruz e sem dor tu podes entrar no Reino dos céus, quando
Cristo nem poderia, nem entraria, nem qualquer dos seus amigos e santos mais
amados ganharia dEle tal privilégio? Porque Ele disse: "Porventura, não
convinha que o Cristo padecesse essas coisas e entrasse na sua glória?" Tu
estás completamente equivocado em teu pensamento: tu não seguiste as pegadas
de Cristo a ti mostradas; pois Ele, pela cruz, passou deste mundo ao seu Pai
celestial. Entre os vencedores e cidadãos do Reino celestial, perguntes a quem
quiseres. como Ele veio a possuir esta glória de Deus para sempre. Não foi pela
cruz e sofrimento? Então, irmãos, tomai o doce e leve jugo do Senhor. Abraçai
com todo o afeto a cruz santa até o fim — ela floresce com todas as virtudes;
está cheia de unção celestial — para que vos conduza sem engano, com a esperança
da glória, à vida eterna.
O
que mais direi? Este é o caminho, e não há outro; o caminho certo, o caminho
santo, o caminho perfeito, o caminho de Cristo, o caminho dos justos, o caminho
dos eleitos que serão salvos. Andai nele, perseverai nele, permanecei nele,
vivei nele, morrei nele, exalai vosso espírito nele. A cruz de Cristo conquista
todas as maquinações do Diabo; a cruz atrai para si o coração de todo crente;
destrói todas as coisas más e nos confere todas as coisas boas por meio de
Jesus Cristo, que foi pendurado e morreu nela. Não há armadura tão forte, seta
tão afiada e tão terrível contra o poder e crueldade do Diabo, nada que ele
tema tanto quanto o sinal da cruz, na qual ele fez com que o Filho de Deus
fosse suspenso e morto, que era inocente e puro de toda mancha.
Ó
cruz de Cristo verdadeiramente bendita, mais digna de toda a honra, a ser
abraçada com todo o amor; que faz com que os que te amam carreguem seus fardos
com facilidade, que consola os tristes em repreensões duradouras; que ensina
aos penitentes como obter perdão de toda ofensa. Ela é honrada aos anjos
santos; mais adorável aos homens, mais terrível aos demônios; menosprezada aos
orgulhosos, aceitável aos humildes; áspera aos carnais, doce aos espirituais;
insípida aos tolos, deliciosa aos devotos; afável aos pobres, receptível aos
estranhos; amigável aos aflitos, conforto aos doentes, consolo aos que morrem.
Então, guardai as sagradas feridas de Jesus nos recessos do vosso coração; elas
têm um sabor além de todas as especiarias para a alma devota que está em
aflição e que não busca consolação de homens.
Segui
a Cristo, que por meio de sua paixão e cruz conduz ao descanso e luz eternos,
porque se vós sois agora seus companheiros na tribulação, em breve vos
assentareis com Ele à mesa celestial na exultação perpétua. Plantai no jardim
de vossa memória a árvore da cruz santa; ela produz um medicamento muito eficaz
contra todas as sugestões do Diabo. Desta árvore muito nobre e fértil, a raiz é
a humildade e pobreza; a casca, o trabalho duro e penitência; os ramos, a
misericórdia e justiça; as folhas, a verdadeira honra e modéstia; o odor, a
sobriedade e abstinência; a beleza, a castidade e obediência; o esplendor, a fé
certa e esperança firme; a força, a magnanimidade e paciência; o tamanho, a
longanimidade e perseverança; a largura, a benignidade e concordância; a
altura, o amor e sabedoria; a doçura, o amor e alegria; o fruto, a salvação e
vida eterna. Então, a Igreja da cruz santa canta bem e dignamente:
Cruz fiel,
acima de todas as outras
Única e
singular árvore;
Nenhuma em
folhagem, nenhuma em flor
Nenhuma em
fruto pode haver igual a ti!
Não
havia tal planta nos jardins de Salomão, nem erva tão salutar para a cura de
todas as doenças, como a árvore da santa cruz, que dá suas especiarias da
virtude divina para os que buscam a salvação. Esta é a árvore mais frutífera,
bendita acima de todas as árvores do paraíso; espraiando seus ramos adoráveis,
adornada com folhas verdes, estendidas com frutos ricos pelo mundo; por sua
altitude, tocando o céu; por sua profundidade, penetrando o inferno; por sua
extensão, circundando montanhas e colinas; por sua magnitude, enchendo o mundo
em volta; por sua fortaleza, conquistando os reis maus e os perseguidores da
fé; por sua misericórdia, atraindo os fracos; por sua suavidade, curando os
pecadores. Esta é a palma gloriosa que é corretamente chamada de
"cristífera", levada nos ombros de Jesus, fincada no monte do
Calvário; condenada pelos judeus, desprezada pelos gentios, ultrajada pelos
ímpios, lamentada pelos crentes, implorada pelos piedosos.
Bem-aventurado
é o homem, fiel é esse servo, que perpetuamente leva as feridas sagradas de
Jesus em seu coração; e, se a adversidade o encontra, recebe-a como da mão de
Deus e piamente a suporta, para que ele, pelo menos em algum grau, seja
conformado com o Crucificado. Ele é digno de ser visitado e consolado por
Cristo, que analisa amplamente para se conformar na vida e na morte com sua
paixão. Este é o caminho da santa cruz, esta é a doutrina do Salvador, esta é a
sabedoria dos santos, esta é a regra dos monges, esta é a vida dos bons, esta é
a lição dos escreventes, esta é a meditação dos devotos: imitar Cristo
humildemente, sofrer o mal por Cristo, escolher o amargo em vez do doce;
menosprezar as honras, suportar o desprezo com serenidade, privar-se das
delícias do mal; fugir das ocasiões dos vícios, evitar a dissipação; lamentar
por nossos próprios pecados e pelos dos outros, orar pelos atribulados e pelos
tentados, ser grato pelos benfeitores, fazer súplicas pelos adversários para
que se convertam; regozijar-se com os que estão em prosperidade, lamentar com
os que sofrem dano, socorrer os indigentes; não buscar coisas suntuosas,
escolher o que é humilde, amar o que é simples; cortar superfluidades, estar
contente com pouco, laborar pelas virtudes, lutar diariamente contra os
vícios; subjugar a carne pelo jejum, fortalecer o espírito pela oração e
leitura, recusar os elogios humanos; buscar a meditação, amar o silêncio, estar
livre para Deus; suspirar pelas coisas celestiais, desprezar de coração tudo o
que é terreno, pensar que nada, exceto Deus, traz conforto. Aquele que faz
isso, pode dizer junto com o bendito apóstolo Paulo: "Para mim o viver é
Cristo, e o morrer é ganho". E, novamente: "Mas longe esteja de mim
gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo
está crucificado para mim e eu, para o mundo" (Gl 6.14). Ó monge religioso
e seguidor da vida mais rígida, não te apartes da cruz que tu tomaste; mas
leva-a e carrega-a contigo mesmo até a morte; e tu acharás descanso eterno, e
glória e honra celestiais. Quando a tributação te encontrar, é Cristo que põe
sua cruz em ti e te mostra o caminho pelo qual tu tens de ir para o Reino
celestial. Mas se alguém se jacta e espera as glórias e honras deste mundo,
está na verdade enganado, e absolutamente não levará consigo nada do que esteve
acostumado a amar no mundo. Mas aquele que se gloria em Cristo e menospreza
todas as coisas por causa de Cristo, será consolado por Cristo na vida
presente. Na vida por vir, ele será cheio das bênçãos celestiais e se
regozijará oportunamente com Cristo e com todos os santos, por toda a
eternidade. Que Jesus Cristo nos conceda isso, que por nós sofreu e morreu na
cruz, a quem seja o louvor e a glória pelos séculos dos séculos. Amém.
Thomas á Kempis nasceu: em 1381, em
Kampen, na orla de Zuiderzee, Países Baixos, e morreu no mosteiro do monte
Santa Inês, em Zwolle, em 1471. Setenta anos de sua longa vida foram passados
no convento agostiniano do monte Santa Inês. Foi lá que ele produziu o imortal
clássico da vida devocional A imitação de Cristo, o qual, como escreveu
o Dr. Charles Hodge, "espalhou-se como incenso pelos corredores e nichos
da Igreja Universal".
Seu
sermão "Tomando a Cruz" é um belo e eloqüente tributo a Cristo e a
cruz.
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