Alguns meses atrás, assisti uma
reportagem do gênero “trágico-cômico”. Um repórter em São Paulo decidiu abrir
uma igreja. Dirigiu-se à praça da Sé e, admirado com a facilidade de um homem
que lá pregava, decidiu contratá-lo como “pastoral-trainner”. Pasmem! O
pregador aceitou a proposta e lhe orientou como se vestir, o que deveria saber
da Bíblia, como usar a voz e até o levou para um pastor que o orientou nos
“detalhes comerciais”, inclusive na escolha do nome da igreja. A conversa foi
sórdida e diabólica, pois o repórter disse que queria uma igreja com o nome:
“Gaviões fiéis do Senhor” e o suposto pastor respondeu: “Não dá. Esse nome é
ruim. Com ele você não vai atrair para a sua igreja torcedores de outros
times…”.
Estou consciente que o propósito da reportagem era expor ao
ridículo o evangelicalismo que hoje se espalha pelo Brasil, fazendo mercado da
fé. Este tipo de mercantilismo é muito fácil de ser identificado, porém, de
igual forma, tenho visto outro tipo de “negócio da fé” ganhar espaço dentro da
igreja, atingindo membros, líderes, obreiros e também pastores. Para soar de
forma aceitável, mui frequentemente a prática recebe o nome agradável de
“bênção”. Sim, eu estou falando de dinheiro como fator de decisão, como
objetivo de vida que se disfarça de múltiplas maneiras, tentando enganar
qualquer crente que se deixe atrair pela busca do ter. Com propósito de trazer
uma reflexão sobre o assunto à luz da palavra de Deus, abordo alguns aspectos
como ponto de partida para reflexões mais detalhas e pessoais.
1. A pregação do evangelho não é
uma simples questão de informar outra pessoa
Antes de mergulhar na
questão propriamente dita do dinheiro, julgo mais importante expor que a tarefa
missionária de anunciar a Cristo não é a simples transmissão de conhecimento de
uma pessoa para outra. O evangelho (literalmente: boas notícias que merecem
divulgação) não é apenas divulgar o que está escrito sobre Jesus. O evangelho é
o próprio Jesus, Emanuel, Deus conosco. O apóstolo João registrou nove
afirmações de Jesus acerca de sua ação salvadora, precedida da expressão: “Eu
sou” (O Messias – 4.26; O Pão da vida – 6.35; A Luz do mundo – 8.12; Deus –
8.24,58; A porta – 10.7; O bom Pastor – Jo 10.11; A ressurreição e a vida –
11.25; O caminho, a verdade e a vida – Jo 14.6; A videira verdadeira – Jo
15.1). Outros textos dos evangelhos deixam bem claro que o encontro com Jesus
era sempre impactado ou transformador. Costumo dizer que ninguém que se
encontra com Jesus é a mesma pessoa mais. Muito, muito mais que uma notícia, o
anúncio do evangelho traz consigo a manifestação do poder de Deus. Jesus
mostrou isso ao revelar a vida particular da mulher samaritana (Jo 4.16-18). A
aplicação pelo Espírito Santo da mensagem de salvação pela fé em Jesus tira
vidas do inferno e as coloca no céu (Jo 5.24; Cl 1.13). O próprio Deus concedeu
poder aos crentes para pregarem o evangelho e o Espírito Santo concede
autoridade sobrenatural para os servos de Cristo testemunharem (At 1.8). O
reino de trevas pode tentar atrapalhar a pregação do evangelho, mas não tem
poder para impedi-la, nem muito menos superar a autoridade que Cristo concedeu
aos seus filhos (Mt 28.18).
O evangelho, quando
anunciado, tem poder para transformar vidas (2 Co 5.17), restaurar
relacionamentos danificados, produzir paz em um ambiente de medo e insegurança
(Rm 5.1-8) e dar esperança a quem está aflito (Rm 8.24-28). O evangelho é
mensagem de vida eterna em Cristo e com Cristo (Jo 3.16). É importante destacar
que o poder dado à igreja é o que permite que a igreja avance e amplie a ação
do reino de Deus. Em Mateus 16.18-19 o Senhor Jesus afirmou que as portas do
inferno não terão poder sobre a igreja, pois a ela serão dadas as chaves do
reino. Destaco que porta é instrumento de defesa que visa impedir a entrada.
Mas a igreja tem as chaves, tem autoridade divinamente concedida. Logo, Satanás
não tem poder para paralisar a ação missionária da igreja. Toda oportunidade
que o crente tem de testemunhar de Jesus é uma oportunidade de manifestação do
poder de Deus. Como estrutura de base doutrinária, verificamos que a missão de
evangelizar é um grande privilégio que Deus deu aos crentes. Desta forma,
jamais deve ser considerada como meio de vida. Tal conceituação mercantilista
reduziria a tarefa-privilégio de todos os filhos de Deus em “profissão” para
alguns.
2. A pregação do Evangelho é
anúncio da vitória de Cristo
O primeiro anúncio da
promessa de mandar o Salvador foi feita pelo próprio Deus aos nossos primeiros
pais, após eles terem pecado e quando ainda estavam no Éden (Gn 3.15). É
unânime entre os estudiosos o uso da frase “Jesus virá”, como aglutinadora dos
39 livros do Antigo Testamento, e “Jesus veio” para agrupar os 27 escritos do
Novo Testamento. Jesus é indiscutivelmente o tema central da Bíblia. As
Sagradas Escrituram nos revelam com detalhes a ação divina, ao longo do tempo,
providenciando a restauração para o pecador através de Jesus Cristo, plano este
elaborado por Deus na eternidade (I Pe 1.19-20). O evangelho se inicia com o
anúncio de que Deus planejou e executou tudo o que era necessário para
restaurar o estado de desgraça e morte que o pecador se encontra. A execução
desse plano, que foi realizada integralmente por Jesus Cristo, exige pregação
(Rm 10.13-15). Considere o diálogo de Jesus com a mulher samaritana a beira do
poço (Jo 4.6-26). A conversa girava sobre vida pessoal e sobre local de adoração.
Observe que havia na mulher o conhecimento da promessa do Messias (Jo 4.25), e
o Senhor usou a profecia para revelar a mulher que Ele era o Messias (Jo 4.26).
Aquele foi o ponto central de toda a conversa. Ele como Messias se faria pecado
em lugar do pecador, morreria a morte que era o castigo para o pecador e
concederia perdão e vida para pecadores arrependidos (Is 53.1-10). A pregação
do evangelho é o anúncio que Jesus venceu o pecado, a morte, o diabo e seus
anjos (Cl 2.14-15; Hb 2.14) e que deseja habitar com seus filhos e filhas, os
quais salvou. Por isso, pregar o evangelho é mais do que divulgar a boa notícia
de perdão, vida e reconciliação com Deus. É oferta de vida com Deus unicamente
por meio da vitória de Cristo. Quem prega o evangelho não o deve fazer em busca
de receber recompensa alguma, pois trata-se de tarefa-privilégio.
3 – A pregação do evangelho é
tarefa espiritual da igreja
Ao ler o livro de livro de
Atos descobrimos o relato acerca de um oficial do exército romano chamado
Cornélio que era um homem “temente a Deus” (At 10.22). Esta é uma expressão que
qualificava um gentio que se convertera ao judaísmo, mas ainda não fora
circuncidado. Como um adepto obediente do judaísmo, ele cria no Messias que
deveria vir, orava e adorava a Deus e era generoso para com os pobres (At
10.2), porém não conhecia Jesus Cristo. O texto bíblico revela que um anjo
apareceu a Cornélio e ordenou que ele mandasse chamar o apóstolo Pedro (At
10.3-4). Destaco que o anjo não evangelizou Cornélio, mas indicou quem poderia
fazê-lo. Nesse fato há uma grande revelação: A evangelização é uma tarefa que
envolve o mundo espiritual e impacta a realidade material. No caso do
comandante romano, os anjos atuaram em favor da salvação dele, agindo
exatamente como está escrito na carta aos Hebreus (Hb 1.14). As Escrituras
Sagradas também revelam que o reino de trevas atua de forma contrária, tentando
impedir a salvação das pessoas (Mt 13.19; At 13.4-10). Quando um crente pratica
a evangelização, há também uma ação espiritual em andamento. Ninguém se
converte porque o pregador é “bom evangelista” (bom profissional?). A salvação
do pecado exige a intervenção poderosa do Espírito Santo. Envolve a concessão
divina de perdão e graça de Jesus, tirando o pecador do reino de trevas e o transportando
para o reino de Cristo (Cl 1.13). Como se esperar ou negociar remuneração por
apenas obedecer a quem nos salvou da condenação eterna? Não seria muitas vezes
mais adequado e justo a apresentação de gratidão do que esperar remuneração?
4. Dinheiro não é prioridade no
reino de Deus
Nenhum crente que conhece o
ensino de Jesus chamado “O sermão da montanha” (Mt 5,6 e 7) deixará de
reconhecer que a busca por dinheiro ou bens materiais não pode ocupar as
principais prioridades da vida. Jesus foi muito enfático ao afirmar: “Não
acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem
corroem e onde ladrões escavam e roubam;” (Mt 6.19). Qualquer intérprete
sincero deste texto concluirá que a vida de hoje trafega na contramão do ensino
de Jesus. Nesta área, não é absurdo dizer que os crentes estão se igualando e
duplicando o estilo de vida do mundo. Pais crentes educam os seus filhos para
ser um sucesso financeiro, ou seja, saber para conseguir um emprego/negócio
estável, ganhar um bom dinheiro e poder ter coisas nessa vida. Como agiriam
pais crentes que ouvissem do seu filho adolescente, perto de fazer o
vestibular, a seguinte frase: “Papai e mamãe, eu vou fazer vestibular para
licenciatura em geografia”? Quem não ficaria preocupado? Afinal, Mamon (o deus
do dinheiro) não abençoa quem é licenciado em geografia! Os pais crentes do
século XXI estão deixando de educar os seus filhos para a glória de Deus. A
atitude de decidir a vida, tendo dinheiro como o fator de definição de rumos, é
pura idolatria! (Mt 6.24). Essa influência diabólica do dinheiro tem atingindo
em cheio pastores, missionários e líderes. Via de regra, sempre que uma
proposta ministerial é feita oferecendo mais dinheiro, ela é interpretada como
bênção de Deus. Qual é o crente, membro de igreja, que antes de dizer “sim” a
uma proposta de trabalho mais vantajosa, primeiro leva em consideração “o reino
de Deus e a sua justiça” (Mt 6.33)? Quantos crentes simplesmente deixam o
ministério abençoador que estão exercendo, para ganhar mais dinheiro em outro
lugar ou que exige maior dedicação de tempo? Será que o reino de trevas não
pode oferecer dinheiro para desviar um crente do seu ministério? A resposta é
sim! Se o dinheiro é fator decisivo no Reino de Deus, então a missão estará
sempre submissa ao dinheiro. Não desconsidero a necessidade do sustento
material. A minha denúncia é contra a prioridade que indevidamente é concedida
pelos servos de Deus ao dinheiro e a busca de segurança. Reconheço que o
cumprimento da responsabilidade missionária é continuadamente sustentado
através da estrutura material, porém quem vier a concebê-la como meio de vida,
inverteu os valores. Pelo evangelho devemos estar prontos até para morrer: “Se
alguém quer ser meu seguidor, que esqueça os seus próprios interesses, esteja
pronto cada dia para morrer como eu vou morrer e me acompanhe.” (Lc 14.23 –
NTBLH), e este princípio é prioritário, está acima da profissão, seja ela qual
for.
5. Quem prega o evangelho,
que viva do evangelho
Chegamos ao ponto central de
nossa reflexão. Identificar o problema e não encontrar uma solução é
simplesmente descobrir que se está perdido sem saber para onde ir. Sabendo que
a Bíblia não permite orientar a vida em função do dinheiro, precisamos, então,
identificar qual é a orientação de Deus para o seu povo no que se refere a
busca dos bens materiais e do sustento. Vou abordar a questão em dois focos.
Primeiro está a permissão bíblica de se obter sustento para a vida através do
evangelho (I Co 9.14). É preciso deixar bem claro que a qualificação “pregam o
evangelho” não se aplica ao cumprimento da responsabilidade missionária que
pertence a todos os crentes. Tal qualificação, segundo a argumentação do
apóstolo Paulo, diz respeito àquelas pessoas que foram divinamente vocacionadas
para o serviço ministerial e a este serviço se dedicam inteiramente e com o
reconhecimento da igreja (I Co 9.9-13). A essas pessoas, o povo de Deus deve
ser o meio de proporcionar a retribuição financeira que lhes proporcione uma
manutenção digna. O segundo foco é o ensino bíblico da providência divina para
a busca do sustento, o qual inequivocamente abraça o fator prioridade como
decisivo para todos (Mt 6.33). Ninguém pode contestar que a prioridade maior de
um obreiro que vive do evangelho ou mesmo de um profissional evangélico deve
ser a glória e o reino de Deus (I Co 10.31; Mt 6.33). E mais, a questão da
garantia divina de sustento diz respeito ao atendimento do necessário (Lc
12.22, I Tm 6.8). Afirmo isto, porque o Senhor não prometeu para o seu povo
riquezas e vida fácil neste mundo (Jo 16.33). Alias, quem colocar a busca por
riqueza como prioridade maior, encherá sua vida de sofrimentos (I Tm 6.9-11).
Entretanto, Deus garantiu que nenhum de seus servos ficará desamparado ou a sua
descendência mendigará o pão (Sl 37.25). O ensino das Sagradas Escrituras
apresenta o dinheiro e o acesso aos bens materiais como fatores que viabilizam
o cumprimento de nossa missão, a qual é a nossa principal prioridade de vida (I
Pe 2.9).
Concluindo, percebemos que
todos que desejam servir ao Senhor com a dedicação correta e por ele aceitável
(Lc 14.23), necessitam estar dispostos a não se igualar àqueles que não tem
Deus. Tal diferença se dá na determinação das prioridades da vida (Mt 6.32) e
como se gastará os anos de sua existência em busca de ter. Trazendo mais luz
para o meu assunto central, os obreiros e pastores, como modelos do rebanho do
Senhor, não podem conceber seus ministérios como meio de vida, uma atividade
profissional. A pregação do evangelho não é meio de vida para quem não
conseguiu espaço no mundo profissional, nem muito menos, a profissionalização
do ministério trás maior dignidade. Quem foi chamado para dedicar-se ao
evangelho é certo que receberá o seu sustento do evangelho. Porém, quem faz do
evangelho o seu meio de vida e vive “pregando melhor para melhor viver”, ou
ainda o crente que molda a sua vida ter dinheiro e segurança, descaracterizam a
sua vocação, submetem o espiritual ao material e secularizam o que é santo.
Para não terminar destacando
o negativo, relembro que o apóstolo Paulo disse a Timóteo: “Se alguém quer
muito ser bispo na Igreja, está desejando um trabalho excelente.” (I Tm 3.1
NTBLH). Eis aqui o conceito que não deve ser confundido. Quem prega o evangelho
tem um trabalho para fazer, uma missão a cumprir. Este trabalho-vocação é a
resposta de servo (escravo) disposto a obedecer, independente das
circunstâncias (soa estranho, não?). Deus pode chamar alguns desses
vocacionados para serem obreiros que se dedicam integralmente ao ministério
pastoral ou missionário e desse trabalho receberem o sustento. Quem define o
que fazer, onde fazer e até os termos de como fazer é o próprio Senhor. Pregar
o evangelho é responsabilidade de todos, viver do evangelho é resposta
provedora de Deus para alguns.
Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor de Cidades do Interior (Ultimato/Betel) e “Cidades para a Glória de Deus” (Visão Mundial). É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).
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