Teologia
Calvinista
Pela
graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus (Ef 2:8)
As
doutrinas dos cinco solas da Reforma: Sola Scriptura, Solus Christus, Sola
Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria
No dia 31 de Outubro de 1517, na porta da Igreja do Castelo de
Wittenberg, na Alemanha, Lutero afixou as suas 95 teses que acabaram provocando
o grande movimento religioso, conhecido como a Reforma do Século XVI. Nelas
Lutero convidava os interessados a debater a questão das indulgências (que eram
vendidas para a construção da Basílica de S. Pedro, em troca de perdão de
pecados) e os males que esse tráfico religioso podia acarretar. Era costume na
época afixar em lugares públicos temas ou teses para debate e convidar os
interessados para discuti-los. Embora ninguém tivesse comparecido para o
debate, em pouco tempo toda a Alemanha conhecia as teses de Lutero, que lhe
custaram a bula de excomunhão, mas que representaram também o começo da obra de
purificação da Igreja e seu retorno à verdade.
Em suas teses, Lutero questionava o poder (ou mesmo a intenção) do Papa
de perdoar pecados ou de isentar alguém de penas, a não ser aquelas por ele
mesmo impostas. Negava que esse perdão (de penas ou penitências) pudesse se
estender aos que já haviam morrido e que, porventura, estivessem no purgatório.
Para ele, só o arrependimento, seguido de atos de amor e penitência, com ou sem
carta de perdão (indulgência) podia realmente perdoar pecados. Destacava o
valor da Palavra de Deus, a qual não deveria ser silenciada em benefício da
pregação das indulgências. A intenção do Papa, dizia, deve ser esta: se a
concessão dos perdões - que é matéria de pouca importância - é celebrada pelo
toque de um sino, com uma procissão e com uma cerimônia, então o Evangelho -
que é a coisa mais importante - deve ser pregado com o acompanhamento de cem
sinos, de cem procissões e de cem cerimônias (tese 55) e, ainda, o verdadeiro
tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de Deus (tese
62). Negava que a cruz adornada com as armas papais (que era carregada pelos
vendedores de indulgências) tivesse o mesmo efeito que a cruz de Cristo (tese
79). Muitas outras questões foram levantadas nas teses, as quais acabavam
batendo na própria autoridade do Papa e na lisura de suas intenções. Lutero
afirmava: Essa licenciosa pregação dos perdões torna difícil, mesmo a pessoas
estudadas, defender a honra do Papa contra calúnia, ou pelo menos contra as
perguntas capciosas dos leigos. Esses perguntam: Por que o Papa não esvazia o
purgatório por um santíssimo ato de amor e das grandes necessidades das almas;
isto não seria a mais justa das causas, visto que ele resgata um número
infinito de almas por causa do sórdido dinheiro dado para a edificação de uma
basílica que é uma causa bem trivial? ... Que misericórdia de Deus e do Papa é
essa de conceder a uma pessoa ímpia e hostil a certeza, por pagamento de
dinheiro, de uma alma pia em amizade com Deus, enquanto não resgata por amor
espontâneo uma alma que é pia e amada, estando ela em necessidade?... As
riquezas do Papa hoje em dia excedem muito à dos mais ricos Crassos; não pode
ele então construir uma basílica de S. Pedro com seu próprio dinheiro, em vez
de fazê-lo com o dinheiro dos fiéis? ... Abafar esses estudados argumentos dos
fiéis apelando simplesmente para a autoridade papal em vez de esclarecê-los
mediante uma resposta racional, é expor a Igreja e o Papa ao ridículo dos
inimigos e tornar os cristãos infelizes (teses 81, 82, 84, 86 e 90).
Com essas e outras proposições Lutero alcançou mais do que podia
imaginar. Atingiu o ponto crucial do problema: a situação de distanciamento do
Evangelho em que se encontrava a Igreja. Os males da Igreja não eram apenas os
seus desvios morais, econômicos e políticos, que a colocavam em descrédito
perante o povo. Seu problema principal, responsável também por estes, era o
afastamento das doutrinas fundamentais da Palavra de Deus. A Reforma trouxe a
Igreja de volta às Escrituras e ao Evangelho pregado pelos apóstolos. O próprio
Lutero, de início, não estava totalmente livre dos erros pregados por sua
Igreja, como muito bem atesta sua crença no purgatório (teses 10, 11, 15, 16,
17, 22, etc), e no valor da penitência (sofrimento) e do perdão do Papa para
certos pecados (teses 6, 7, 8,12, 34, 38, 40, etc.). Foi o estudo da Bíblia que
revelou quão longe a Igreja estava afastada da verdade e a trouxe de volta à
pureza de sua crença primitiva. A Reforma restituiu à Igreja a crença em
doutrinas chaves, que se tornaram essenciais para a sua pregação e para
distingui-la dos erros que continuaram e ainda são mantidos pela Igreja Romana
até os nossos dias. É a importância dessas doutrinas, conhecidas por sua
designação latina Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli
Deo Gloria, que queremos apresentar, ainda que de forma breve, neste estudo.
1. Sola Scriptura - "Somente a Escritura", ou a autoridade e
suficiência das Escrituras.
Para os reformadores, somente a Escritura Sagrada tem a palavra final em
matéria de fé e prática. É o que ficou consubstanciado nas Confissões de Fé de
origem reformada. A Confissão de Fé de Westminster, que adotamos, afirma:Sob
o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos
os livros do Velho e do Novo Testamento, ... todos dados por inspiração de Deus
para serem a regra de fé e de prática... A autoridade da
Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do
testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra
de Deus... O Velho Testamento em Hebraico... e o Novo Testamento em Grego...,
sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e
providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e
assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como
para um supremo tribunal... O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias
religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados todos os
decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as
doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença
nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na
Escritura.(I, 2,4,8,10). (Leia a CFW)
A Igreja Católica Romana também aceita as Escrituras como Palavra de
Deus, mas não só as Escrituras. Ela acredita que as decisões da Igreja através
dos seus concílios e do Papa, quando fala oficialmente (ex cathedra) em matéria
de fé e de moral, são igualmente a palavra de Deus, infalível. É o que se chama
de Tradição da Igreja. Sobre a autoridade da Igreja e do Papa, assim diz um
autor católico: "Cristo deu à Igreja a tarefa de proclamar sua Boa-Nova
(Mt 28, 19-20). Prometeu-nos também seu Espírito, que nos guia "para a
verdade" (Jo 16,13). Este mandato e esta promessa garantem que nós, a Igreja,
jamais apostataremos do ensinamento de Cristo. Esta incapacidade da Igreja em
seu conjunto de extraviar-se no erro com relação aos temas básicos da doutrina
de Cristo chama-se infalibilidade... A infalibilidade sacramental da Igreja é
preservada pelo seu principal instrumento de infalibilidade, o Papa. A
infalibilidade que toda a Igreja possui, pertence ao Papa dum modo especial. O
Espírito de verdade garante que quando o Papa declara que ele está ensinando
infalivelmente como representante de Cristo e cabeça visível da Igreja sobre
assuntos fundamentais de fé ou de moral, ele não pode induzir a Igreja a erro.
Esse dom do Espírito se chama infalibilidade papal. Falando da infalibilidade
da igreja, do Papa e dos Bispos, o Concílio Vaticano II diz: "Esta
infalibilidade, da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada... é
a infalibilidade de que goza o Romano Pontífice, o Chefe do Colégio dos Bispos,
em virtude de seu cargo... A infalibilidade prometida à Igreja reside também no
Corpo Episcopal, quando, como o Sucessor de Pedro, exerce o supremo
magistério" (Lúmen Gentium, nº 25)[1]
Sobre a relação entre as Sagradas Escrituras e a Tradição, diz esse
mesmo autor: O Concílio Vaticano II descreve a Sagrada Tradição e as Sagradas
Escrituras como sendo "semelhante a um espelho em que a Igreja
peregrinante na terra contempla a Deus" (Constituição Dogmática Dei
Verbum, sobre a Revelação Divina, nº 7). A palavra revelada de Deus chega até
você mediante palavras faladas e escritas por seres humanos. A Escritura Sagrada
é a Palavra de Deus "enquanto é redigida sob a moção do Espírito
Santo" (Dei Verbum, nº 9). A Sagrada Tradição é a transmissão da Palavra
de Deus pelos sucessores dos apóstolos. Juntas, a Tradição e a Escritura
constituem um só sagrado depósito da palavra de Deus, confiado à
Igreja"(Dei Verbum, nº 10). E mais adiante acrescenta: A Sagrada Tradição
é a transmissão da Palavra de Deus. Esta transmissão é feita oficialmente pelos
sucessores dos apóstolos, e não oficialmente por todos os que cultuam, ensinam
e vivem a fé, tal como a Igreja a entende. (Ibidem).
Nos dias de Lutero a Igreja Romana já pensava assim e assim pensa até
hoje. Na prática, a Tradição está acima da Bíblia para o catolicismo. Já que
cabe à Igreja transmitir e interpretar a Bíblia, com igual autoridade e
infalibilidade, é a palavra da Igreja, em última instância, que tem valor. O
escritor católico, acima referido, diz: O Vaticano II fez o que a Igreja
docente sempre tem feito: expressou o conteúdo imutável da revelação,
traduzindo-o para formas de pensamento do povo de acordo com a cultura de hoje.
Mas esta "tradução do conteúdo imutável" não é como que vestir
notícias velhas com linguagem nova. Como afirmou o Vaticano II: "Esta
Tradição, oriunda dos Apóstolos, progride na Igreja sob a assistência do
Espírito Santo. Cresce, com efeito, a compreensão tanto das coisas como das
palavras transmitidas... no decorrer dos séculos, a Igreja tende continuamente
para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de
Deus". (Dei Verbum, nº 8).
Pelo Vaticano II a Igreja deu ouvidos ao Espírito, empenhou-se na sua
"tarefa de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do
Evangelho" (Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo
Moderno, nº 4). Nem sempre é claro aonde o Espírito está nos conduzindo. Mas o
terreno no qual nós, a Igreja, caminhamos adiante da nossa peregrinação é
firme: o Evangelho de Cristo. Nesta etapa da nossa história, um de nossos
instrumentos básicos de Tradição - de transmissão da fé - são os documentos do
Vaticano II (Ibidem).
Por este texto percebe-se que a Igreja Romana arroga a si não só a
autoridade de interpretar e contextualizar a Bíblia, de modo infalível, mas a
de continuar a sua revelação. Por isso a leitura da Bíblia pelos leigos não é
vista como necessária; e, em alguns casos, é tida até como perigosa. A Reforma
ensinou o livre exame das Escrituras. Qualquer pessoa tem o direito e até o
dever de examinar, por si mesma, se o ensino da Igreja está de acordo com as
Escrituras. Foi o que fizeram os crentes de Beréia, pelo que foram elogiados
(At 17:11). A Igreja pode errar e tem errado. A infalibilidade deve ser
atribuída apenas ao texto bíblico, não aos que o interpretam. Em nenhum lugar
da Bíblia lemos que a promessa, dada aos apóstolos, de que o Espírito os
conduziria a toda a verdade se estenderia aos demais líderes da Igreja, em
todos os tempos. Jesus prometeu-lhes que o Espírito não só os guiaria a toda
verdade (Jo 16:13), mas lhes ensinaria todas as coisas e os faria lembrar de tudo
o que lhes tinha dito (Jo 14:26). Isto só poderia aplicar-se a eles, os
apóstolos. Só eles ouviram o que Jesus disse para poder lembrar-se depois, não
os bispos nem os papas. A infalibilidade do Papa (e, por extensão, da Igreja)
só foi declarada como dogma em 1870, no Concílio Vaticano I. Tal dogma,
naturalmente, serviu ao propósito de dar "legitimidade" aos inúmeros
ensinos contrários às Escrituras, tanto os já anteriormente estabelecidos como
outros que viriam depois, como a oração pelos mortos (310), a instituição da
missa substituindo o culto (394), o culto a Maria (431), a invenção do
purgatório (503), a veneração de imagens (783), a canonização dos santos (933),
o celibato clerical (1074), o perdão através da venda de indulgências (1190), a
hóstia substituindo a Ceia (1200), a adoração da hóstia (1208), a
transubstanciação (1215), a confissão auricular (1216), os livros apócrifos
como parte do cânon (1546), o dogma da Imaculada Conceição de Maria (1854) e o
dogma da Assunção de Maria (1950), dentre outros.
Lutero se opôs naturalmente a esse ensino da Igreja. Já nas suas teses
proclamava que comete-se uma injustiça para com a palavra de Deus se no mesmo
sermão se concede tempo igual, ou mais longo, às indulgências do que à palavra
de Deus (tese 54) e que o verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto
Evangelho da glória e da graça de Deus (tese 62). Comparava o Evangelho como
"redes com que, desde a antiguidade, se pescam homens de bem"
enquanto que as indulgências eram "redes com que agora se pescam os bens
dos homens" (teses 65 e 66). Mas foi na Dieta de Worms, em 1521, que
demonstrou estar totalmente convencido de que as Escrituras eram a sua única
autoridade reconhecida. Quando perguntado se estava disposto a se retratar das
afirmações que fizera, negando autoridade a certas decisões de alguns
concílios, sua resposta foi: É impossível retratação, a não ser que me provem
que estou laborando em erro, pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão
evidente; não posso confiar nas decisões dos concílios e dos Papas, pois é
evidente que eles não somente têm errado, mas se têm contradito uns aos outros.
Minha consciência está alicerçada na Palavra de Deus, e não é seguro nem
honesto agir-se contra a consciência de alguém. Assim Deus me ajude. Amém.
Tanto a autoridade única como também a suficiência das Escrituras têm
sido doutrinas preciosas para as igrejas reformadas. Só a Escritura e toda a
Escritura! Não precisamos de outra fonte para saber o que devemos crer e como
devemos agir. Hoje há uma tendência para se colocar a experiência humana e
supostas revelações do Espírito no mesmo nível de autoridade das Escrituras,
por parte de alguns grupos evangélicos. Na prática, às vezes essas experiências
acabam se tornando mais desejadas e tidas como mais valiosas do que o próprio
ensino das Escrituras. Tomam hoje o lugar que, no passado, tomava a Tradição. É
preciso que voltemos ao princípio da Sola Scriptura, se queremos ser realmente
reformados em nossas convicções e práticas. A Escritura, e não a nossa
experiência subjetiva, deve ser o nosso critério de verdade. Nossa pregação não
deve visar o que agrada aos homens, mas o que agrada a Deus. Já dizia Lutero
que os tesouros das indulgências eram muito mais populares dos que os tesouros
do Evangelho (teses 63 e 64), e isso, certamente, porque faziam as pessoas se
sentirem bem, aliviadas do sentimento de culpa, pela promessa, ainda que falsa,
de perdão de pecados. Só a pregação da Lei associada ao Evangelho pode
realmente trazer o homem ao arrependimento e ao perdão divino. As Escrituras
são a espada do Espírito. É por elas, e não independente delas, que o Espírito
age. Nossas experiências espirituais só têm valor se forem produzidas pela
persuasão da Palavra.
2. Solus Christus - "Somente Cristo", ou a suficiência e exclusividade
de Cristo.
O Catolicismo Romano afastou-se do Evangelho e instituiu o culto a
Maria, já em 431, o culto às imagens, em 787, e a canonização dos santos, em
933. Instituiu também a figura do sacerdote como vigário de Cristo, a quem
devem ser confessados os pecados e a quem supostamente foi conferido poder para
perdoá-los, mediante a prescrição de penitências. Um dos pontos centrais das
teses de Lutero tinha a ver exatamente com o poder do Papa e dos sacerdotes de
perdoar pecados, que ele questionava, pelo menos no que diz respeito aos
mortos. Dizia ele: O Papa não tem o desejo nem o poder de perdoar quaisquer
penas, exceto aquelas que ele impôs por sua própria vontade ou segundo a
vontade dos cânones. O Papa não tem o poder de perdoar a culpa a não ser
declarando ou confirmando que ela foi perdoada por Deus; ou, certamente,
perdoando os casos que lhe são reservados. Se ele deixasse de observar essas
limitações a culpa permaneceria. Os cânones da penitência são impostos
unicamente sobre os vivos e nada deveria ser imposto aos mortos segundo eles
(teses 5, 6 e 8). Mas admitia o sacerdote como vigário de Deus, perante quem
Deus podia perdoar a culpa, mediante humilhação do penitente (tese 7). Só mais
tarde Lutero se libertou totalmente de alguns desses ranços de sua formação
católica. Nem poderia ser diferente. Quando ele escreveu as teses, era ainda um
monge católico romano.
O que o catolicismo ensina a respeito de Cristo não é diferente daquilo
que professamos em nossos credos. A encarnação, nascimento virginal, divindade,
morte vicária e ressurreição são cridos e ensinados. O problema é que a Igreja
Romana não crê na suficiência e exclusividade da obra de Cristo para a
salvação. Maria é erigida à posição de intercessora e até co-redentora (não
oficialmente, ainda) e os santos entram também com os méritos de sua
intercessão para a obra salvífica. O autor católico, acima citado, assim se
refere a Maria: No seu livro "Maria em Sua Vida Diária", o
teólogo Bernardo Häring observa: "O Concílio Vaticano II coroou a
Constituição Dogmática sobre a Igreja com um belo capítulo sobre Maria, como
protótipo e modelo da Igreja. A Igreja não pode chegar a entender plenamente a
união com Cristo e o serviço a seu Evangelho, sem um amor e um conhecimento
profundos de Maria, Mãe de Nosso Senhor e nossa Mãe". Com uma visão
penetrante na natureza profundamente pessoal da salvação, o Vaticano II abordou
o influxo de Maria em nossas vidas.
Por ser mãe de Jesus, Maria é a Mãe de Deus. É o que afirma o
Vaticano II: "Na Anunciação do Anjo, a Virgem Maria recebeu o Verbo de
Deus no coração e no corpo, e trouxe ao mundo a Vida. Por isso, é reconhecida e
honrada como verdadeira Mãe de Deus e do Redentor"(Lumen Gentium, nº 53).
Como Mãe do Senhor, Maria é uma pessoa inteiramente singular. Como seu
Filho, ela foi concebida como ser humano (e viveu toda a sua vida) isenta de
qualquer vestígio do pecado original, isto se chama sua Imaculada Conceição.
Antes, durante e após o nascimento de seu filho Jesus, Maria permaneceu
fisicamente virgem. No final da sua vida Maria foi assunta - isto é, elevada -
ao céu, de corpo e alma; a isso chamamos sua Assunção.
Na qualidade de Mãe de Cristo, cuja vida vivemos, Maria é também a mãe
de toda a Igreja. Ela é membro da Igreja, mas um membro totalmente singular. O
Vaticano II exprime sua relação conosco como a de um membro supereminente e de
todo singular da Igreja, como seu modelo... na fé e na caridade. "E a
Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade
filial como mãe amantíssima"(Lumen Gentium, nº 53).
Como uma mãe que aguarda a volta dos seus filhos adultos para casa,
Maria nunca cessa de influenciar o curso de nossas vidas. Diz o Vaticano II:
"Ela concebeu, gerou, nutriu a Cristo, apresentou-o ao Pai no templo,
compadeceu com seu Filho que morria na cruz... Por tal motivo ela se tornou
para nós Mãe, na ordem da graça"(Lumen Gentium, nº 61). "por sua
maternal caridade cuida dos irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam na terra
rodeados de perigos e dificuldades, até que sejam conduzidos à feliz
pátria"(Lumen Gentium, nº 62).
Essa Mãe, que viu seu próprio Filho feito homem morrer pelo resto de
seus filhos, está esperando e preparando seu lugar para você. Ela é, nas
palavras do Vaticano II, seu "sinal da esperança segura e do
conforto" (Lumen Gentium, nº 68) (Ibidem)
Com relação aos santos, diz esse autor: A igreja venera também os outros
santos que já estão com o Senhor no céu. São pessoas que serviram a Deus e ao
próximo dum modo tão notável, que foram canonizados, isto é, a Igreja declarou
oficialmente heróicos, e nos exorta a rezarmos a eles, pedindo sua intercessão
por todos nós junto a Deus. E ainda, A Comunhão dos santos é uma rua de mão
dupla:.. o Vaticano II afirma que, assim como você na terra pode ajudar aqueles
que sofrem o purgatório, assim os que estão no céu podem ajudá-lo na sua
peregrinação, intercedendo por você junto de Deus (Ibidem).
Embora a Igreja Católica não tenha ainda proclamado oficialmente o dogma
de Maria como co-redentora, o que vem sendo buscado por muitos de seus
cultuadores (até agosto de 1997 o atual papa já havia recebido 4.340.429
assinaturas de 157 países solicitando que ele exercesse o poder da sua
infalibilidade para proclamar o dogma de que "a Virgem Maria é
co-redentora, mediadora de todas as graças e advogada do povo de Deus",
cf. https://www.msantunes.com.br/juizo/odesvirt.htm), na prática ela é assim
considerada e com o apoio e ensino explícito do clero. No boletim diocesano da
cidade de Itabuna (BA), assim se expressa Dom Ceslau Stanula, bispo da diocese:
"Maria Co-Redentora - Mês de maio, um dos mais lindos do ano, a humanidade
dedicou a Nossa Senhora. Quase em todas as igrejas e capelas diariamente neste
mês, o povo se reúne para cantar ladainhas e louvores a nossa Senhora. Nossa
Senhora é invocada, venerada e cultuada pelas razões muito profundas e
bíblicas. Maria é a Mãe de Jesus que é Deus, Filho de Deus nosso Salvador, e
portanto ela é a Co-Redentora da humanidade". E para consusbstanciar sua
declaração cita documento do Concílio Vaticano II que diz: "Assim de modo
inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e caridade, ela cooperou
na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por tal
motivo ela se tornou para nós mãe na ordem da graça".
Certamente este não é o ensino da Bíblia. Ela nos diz que "há um só
Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem" (1Tm
2:5), que, "por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se
chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles" (Hb 7:25) e que
"não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum
outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos"
(At 4:12). Não precisamos de intercessão de Maria ou dos santos, nem têm eles
qualquer poder para tal. Quem disse "na casa de meu Pai há muitas
moradas... vou preparar-vos lugar", foi Jesus e não Maria (Jo 14:2). A
obra de Cristo é suficiente para a nossa salvação. Maria e todos os demais
crentes só puderam ser salvos pela graça e mediação eficaz de Cristo. Assim
cantou ela: "A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se
alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva.
Pois, desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada, porque o
Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome" (Lc 1:46-49). Quando o
povo de Listra quis adorar a Paulo e Barnabé, sua resposta foi a seguinte:
Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como vós, sujeitos aos
mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas coisas vãs vos
convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles
(At 14:15). Os verdadeiros santos nunca reivindicaram qualquer poder, glória ou
honra para si mesmos. Certamente é falsa esta aspiração atribuída a Maria:
"Até que eu seja reconhecida no lugar em que a Santíssima Trindade desejou
que eu estivesse, eu não poderei exercer meu poder totalmente, no trabalho
materno de co-redenção e de mediação universal das graças... (Nossa Senhora a
Padre Gobbi, 14/06/80)" [2]
Uma outra conseqüência do princípio do Solus Christus foi a doutrina que
ficou conhecida como a do "Sacerdócio Universal dos Crentes". Não
necessitamos de outro sacerdote ou mediador entre nós e Deus que não seja o
Senhor Jesus Cristo. Cada um pode chegar-se a Ele diretamente, sem
intermediários humanos. Como diz o autor aos Hebreus: "Tendo, pois, a
Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus,
conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não
possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as
coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto,
confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e
acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hb 4:14-16).
A Reforma trouxe à Igreja o Evangelho simples dos apóstolos, centrado na
suficiência e exclusividade da obra de Cristo para a salvação. A velha
confissão de Paulo foi de novo a confissão dos reformadores: "Porque
decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado" (1Co
2:2)
3. Sola Gratia - "Somente a Graça", ou a única causa eficiente
da salvação
Intimamente ligado ao princípio do Solus Christus está o da Sola Gratia.
A Bíblia ensina que o homem é totalmente incapaz de fazer qualquer coisa para a
sua salvação. Está espiritualmente morto em delitos e pecados. Um morto nada
pode fazer sem que antes seja vivificado. Paulo ensina como se operou a nossa
salvação: "Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e
pecados ... e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com
Cristo, - pela graça sois salvos" (Ef 2:1,5). Foi "pela graça",
diz Paulo, que fomos vivificados, estando nós mortos. A doutrina da inabilidade
total do homem para salvar-se foi um dos marcos da Reforma. No seu livro De
Servo Arbitrio ("A Escravidão da Vontade"), Lutero nega que o homem
tenha livre arbítrio, ou seja, a capacidade de escolher entre o bem e o mal,
depois da queda. Vendido ao pecado, o homem não tem mais a habilidade para
escolher o bem, pois sua vontade está presa ou escravizada pelo pecado. Só pode
e só quer escolher o pecado. A salvação é, portanto, exclusivamente ato da
livre e soberana graça de Deus. Não só Calvino, como geralmente se pensa, mas
também Lutero e os demais reformadores deram grande ênfase na necessidade da
graça soberana de Deus para a salvação do homem. É por isso que a eleição
divina é incondicional.
Todavia, não era isso que a Igreja ensinava nos dias da Reforma. O
catolicismo, seguindo o pensamento de Pelágio e, principalmente, de Tomás de
Aquino, acreditava e ainda acredita que o homem não está totalmente corrompido
em sua vontade e natureza. Ele precisa da graça de Deus, mas não no sentido
regenerador, como cremos. Segundo a teologia romana o homem pode conhecer a
Deus através de sua razão, conhecimento que é chamado de Teologia Natural. O
documento 1806 (Denzinger) do Concílio Vaticano I (1869-1870) diz:
"(Contra os que negam a teologia natural) - Qualquer que disser que o Deus
verdadeiro, nosso Criador e nosso Senhor, não pode ser conhecido com verdadeira
exatidão pelas coisas que foram feitas, pela luz natural da razão humana, seja
anátema (cf. 1785) (Cf. Denzinger 1810, 1812, 1816) (cf F.H. Klooster,
Introduction to Systematic Theology (Grand Rapids: Calvin Theological Seminary,
1985, pp. 182-183).
No artigo católico que temos citado, encontramos como eles entendem o
pecado original: Com exceção de Jesus Cristo e de sua Mãe Maria, todo ser
humano nascido neste mundo está contaminado pelo pecado original. Como São
Paulo declara em Rom, 5, 12: "Por meio de um só homem o pecado entrou no
mundo e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens porque
todos pecaram".
Embora continue a mostrar que há o mal neste mundo, a Igreja não está
sugerindo que a natureza humana esteja corrompida. Ao contrário, a humanidade é
capaz de fazer muito bem. Não obstante sintamos uma "tendência para
baixo", ainda mantemos o controle essencial sobre nossas decisões.
Permanece a vontade livre. E - o que é mais importante - Cristo, nosso Redentor,
venceu o pecado e a morte pela sua morte e Ressurreição. Essa vitória cancelou
não apenas nossos pecados pessoais, mas também o pecado original e seus
propalados efeitos. A doutrina do pecado original, portanto, entende-se melhor
como um escuro pano de fundo contra o qual pode ser aplicada, fazendo
contraste, a brilhante redenção adquirida para nós por Cristo, nosso Senhor.
[3]
Assim, o catolicismo estabeleceu os sacramentos da Igreja (que para eles
são sete e não dois) como meios pelos quais o problema do pecado pode ser
tratado e a graça recebida. A Igreja torna-se medianeira ou mediadora da graça
de Deus. Daí o ensino de que "fora da Igreja não pode haver
salvação", entendida "Igreja" aqui não como o número total dos
eleitos (sentido espiritual) mas como a organização (visível) que,
supostamente, detém o poder de distribuir e administrar a graça de Deus. No
século XVI o cardeal Roberto Belarmino assim descreveu a Igreja Romana: "A
única e verdadeira Igreja é a comunidade de homens reunidos pela profissão da
mesma fé cristã e pela comunhão dos mesmos sacramentos, sob o governo dos
legítimos pastores e especialmente do vigário de Cristo na terra, o Romano
Pontífice" (Ibidem). Mas vem de longa data esse ensino. Assim se
expressaram alguns dos papas do passado: Papa São Gregório I (590-604):
"Agora a Santa Igreja Universal proclama que apenas dentro dela Deus pode
ser realmente adorado, e que fora dela ninguém pode ser salvo." Papa
Inocêncio III (1198-1216): "Realmente, existe apenas uma Igreja Universal
dos fiéis, fora da qual ninguém é salvo. (...) Cremos com nossos corações e
confessamos com nossos lábios que existe apenas uma Igreja, não a dos hereges,
mas a Santa Igreja Católica e Apostólica Romana, fora da qual acreditamos que
ninguém pode ser salvo." Papa Bonifácio VIII (1294-1303): "Nós
declaramos, dizemos, definimos e proclamamos que é absolutamente necessário
para a salvação de toda a criatura humana estar sujeita ao Pontífice
Romano." Papa Eugênio IV (1431-1439): "A Santa Igreja Romana acredita,
professa e prega que todo aquele que permanece fora da Igreja Católica, não
apenas os pagãos, mas também judeus, heréticos e cismáticos, não tomarão parte
da vida eterna, mas irão para o fogo perpétuo, que foi preparado para o diabo e
seus anjos, a não ser que antes da morte eles se unam à Igreja. É de tal modo
importante a união com o corpo da Igreja, que seus sacramentos são úteis para a
salvação apenas para aqueles que permanecem dentro dela, e jejuns, esmolas e
outros trabalhos piedosos, assim como a prática da guerra cristã, só
proporcionarão recompensas eternas a eles tão-somente." Papa Leão X
(1512-1517): "Onde a necessidade de salvação se referir a todos os fiéis
de Cristo, deverá estar sujeita ao Pontífice Romano, como nos foi ensinado
pelas Sagradas Escrituras, pelo testemunho dos santos padres e pela
constituição do nosso predecessor de feliz memória, Bonifácio VIII."[4]
E não pensemos que a Igreja Romana mudou. Recentemente o cardeal Joseph
Ratzinger, da Congregação para a Doutrina da Fé, o novo nome da velha
"Congregatio Propaganda Fide", mais conhecida como Inquisição,
"causou escândalo" por afirmar na declaração Dominus Iesus, aprovada
pelo papa, que "a Igreja Católica é o verdadeiro caminho para a
salvação" (Folha de S. Paulo, de 27/09/2000, p. E8). Os mais ingênuos, que
acreditam na sinceridade do diálogo do Vaticano com as outras religiões
(ecumenismo), consideraram isso um retrocesso. Nada mais óbvio para a Igreja
Católica, que jamais abdicará desta posição, sob pena de admitir seus erros e
reconhecer-se falível.
É por essa razão que a Igreja se julgava no direito de distribuir o
perdão de pecados através da venda das indulgências, pela prescrição de
penitências e outros atos de contrição. Foi a Reforma que trouxe à luz a
verdade da Sola Gratia, ensinada nas Escrituras. Onde a total inabilidade do
homem for negada e os pretensos méritos humanos forem cridos, não haverá
verdade bíblica. O homem nem mesmo pode cooperar com a graça regeneradora do
Espírito. A salvação não é, em nenhum sentido, obra humana. Não são os métodos
ou técnicas humanas que operam a salvação, mas tão somente a graça regeneradora
do Espírito. A fé não pode ser produzida por uma natureza decaída e morta.
"Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados,
escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja,
odiosos e odiando-nos uns aos outros. Quando, porém, se manifestou a
benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras
de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou
sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador" (Tt 3:3-5)
4. Sola Fide - "Somente a Fé", ou a exclusividade da Fé como
meio de Justificação.
Falando da eleição, Paulo argumenta: E, se é pela graça, já não é pelas
obras; do contrário, a graça já não é graça (Rm 11:6). A graça exclui
totalmente as obras. O homem nada pode e nada tem para oferecer a Deus por sua
salvação. A única coisa que lhe cabe fazer é aceitar o dom da salvação, pela
fé, quando esta lhe é concedida. Fé na obra suficiente de Cristo, que lhe é
imputada (creditada em sua conta) gratuitamente. Essa obra consiste na sua vida
de perfeita obediência à lei de Deus, em lugar do homem, obediência que nem
Adão nem qualquer de sua descendência pôde prestar, dada a sua condição de
morte espiritual. Por isso Cristo é chamado de o segundo ou o último Adão (1Co
15:45). Ela consiste também, e principalmente, de sua morte sacrificial em
lugar do pecador eleito, através da qual é pago o preço exigido pela justiça de
Deus para a justificação. A justiça de Deus exige punição do pecado. Ele é
aquele que "não inocenta o culpado" (Ex 34:7). Exige justiça
perfeita. Para que Deus pudesse punir o pecador, mas ao mesmo tempo declará-lo
justo (que é o significado bíblico de justificar), foi preciso que alguém, sem
culpa e com méritos divinos, assumisse o seu lugar. Foi o que o próprio Deus
fez através de Cristo. Assumiu a culpa do pecador eleito e morreu em seu lugar,
satisfazendo assim a justiça de Deus, ofendida pela pecado. Nada menos do que
isso foi suficiente para justificar o pecador. É o que se chama na teologia de
"expiação". Desta forma, Paulo pôde falar em Deus como "aquele
que justifica o ímpio" (Rm 4:5) e da morte de Cristo como a manifestação
da sua justiça, para que ele pudesse ser justo e o justificador daquele que tem
fé em Jesus. Diz ele: "sendo justificados gratuitamente, por sua graça,
mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue,
como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus,
na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em
vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo
e o justificador daquele que tem fé em Jesus" (Rm 3: 24-26). É por isso
também que os reformadores chamavam o crente de simul justus et peccator - ao
mesmo tempo justo e pecador.
Esta foi a doutrina central da Reforma. Lutero, de início, não podia
compreender como a "justiça de Deus se revela no evangelho"
("visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como
está escrito: O justo viverá por fé". Rm 1:17). Para ele, a justiça de
Deus só poderia condenar o homem, não salvá-lo. Tal justiça não seria
"boas novas" (evangelho). Só quando compreendeu que a justiça de que
Paulo fala nesse texto não é o atributo pelo qual Deus retribui a cada um
conforme os seus méritos (o que implicaria em condenação para o homem), mas o
modo como Ele justifica o homem em Cristo, é que a luz raiou em seu coração e a
verdade aflorou em sua mente. Tornou-se, então, um homem livre, confiante e
certo do perdão dos seus pecados. Compreendeu o evangelho! O Evangelho é a
manifestação dessa justiça de Deus, que é recebida somente pela fé. Não é
produzida pelas obras, pois o homem não as tem. ("Visto que ninguém será
justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado"... "concluímos, pois, que o homem é justificado
pela fé, independentemente das obras da lei" Rm 3:20,28).
É pela fé que o justo viverá. Quando Paulo cita esta passagem de
Habacuque, ele a usa para ensinar que é através da fé, e não das obras, que
alguém é declarado justo em Cristo. Isto está mais claro na outra
citação em Gl 3:11, quando ele diz: "E é evidente que, pela lei, ninguém é
justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé". Cristo é a
justiça de Deus ("mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou,
da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" - 1Co
1:30) e pela fé nele nós também somos feitos "justiça de Deus"
("Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que,
nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2Co 5:21). A fé, todavia, é apenas
o meio, dado pelo próprio Deus, pelo qual essa justiça é imputada ao pecador,
não a sua causa ou motivo. Do contrário, a própria fé seria "obra
humana". Per fidem propter Christum - "pela fé, por causa de
Cristo", como deixou claro a Reforma. A fé não é a base nem a causa
meritória da justificação, mas o meio pelo qual ela é comunicada.
Quão longe estava a Igreja dessa verdade simples do Evangelho quando
ensinava que o perdão podia ser comprado com dinheiro e a salvação adquirida
com o mérito dos santos. Tetzel, o vendedor das indulgências do Papa Leão X na
Alemanha, dizia que "ao som de cada moeda que cai neste cofre, uma alma se
desprende do purgatório e voa até o paraíso", refrão que seus
ridicularizadores rimaram no que em português equivaleria a "no que a
moeda na caixa cai, uma alma do purgatório sai" ("sobald das Geld im
Kasten Klingt, di Seele aus dem fegfeuer springt") [5]
Mas não pensemos que a Igreja Católica mudou. Ainda agora, neste ano
considerado o do Jubileu 2000, o Vaticano criou novas indulgências para reduzir
ou anular as penas dos pecados. Um "Manual de Indulgência", de 115
páginas, apresenta algumas das obras que podem aliviar a punição dos pecadores
no purgatório, dentre as quais estão um dia sem fumar, rezar com o Papa em frente
à televisão, ajudar refugiados, orar mentalmente com surdos-mudos, não comer
carne, etc, (cf. artigo "Igreja Católica cria novas indulgências",
Folha de S. Paulo de 19/09/2000), além das que são permanentemente concedidas
como visitar o Vaticano e peregrinar por lugares sagrados. Isto na mesma época
em que a Igreja assinou, juntamente com luteranos da Federação Luterana
Mundial, um acordo em que os dois grupos professam que : " a salvação
decorre da graça de Deus e não das boas obras; só se chega à salvação pela fé;
e, embora não levem à salvação, as boas obras são conseqüência natural da
fé" (cf. artigo "Católicos e luteranos se reconciliam", da mesma
edição da Folha de S. Paulo, já citada). O acordo não é levado a sério pelos
que conhecem o catolicismo e o modo como age, e recebeu críticas inclusive da
parte de igrejas luteranas fiéis à sua origem. É visto apenas como uma manobra
para promover o ecumenismo e, principalmente, para combater o mercantilismo das
igrejas neo-pentecostais, que vêm tirando adeptos das igrejas tradicionais,
principalmente do catolicismo, com sua pregação da "teologia da
prosperidade" (cf. artigo "Acordo visa combater
'mercantilismo'", da referida edição da Folha).
A ênfase na doutrina da justificação somente pela fé é tão oportuna e
necessária agora quanto nos dias de Lutero, e não só porque o catolicismo não
mudou, mas porque o protestantismo mudou. São poucos os evangélicos hoje que
ainda dão ênfase ao aspecto objetivo da justificação unicamente pela fé.
Experiências subjetivas, avivamentos emocionais, respostas a apelos e outras
práticas estão tomando o lugar da pregação dos temas chaves da Reforma. As
doutrinas do pecado original, da expiação vicária, da eleição incondicional e
da justificação somente pela fé estão sendo negadas hoje por muitos evangélicos
que buscam uma acomodação à cultura da modernidade.
5. Soli Deo Gloria - "A Deus somente, a glória", ou a
exclusividade do serviço e da adoração a Deus.
Coroando estes temas que a Reforma nos legou está o da "glória
somente a Deus". Dar glória somente a Deus significa que ninguém, nem
homens nem anjos, deve ocupar o lugar que pertence a Ele, no mundo e em nossa
vida, porque somente Ele é o Senhor. É o que exige o 1º mandamento: "Eu
sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim" (Ex 20:1-2). A história do homem é
uma história de quebra desse mandamento. Depois do pecado, o homem tem
constituído deuses para si em lugar do Deus verdadeiro. Geralmente, esse deus é
ele próprio. Quando decide o que deve ou não crer, o que pode ou não ser
verdadeiro, está dizendo que ele é o seu próprio deus. Sua razão (distorcida
pelo pecado) é o seu critério de verdade. Quando a Igreja se coloca na posição
de julgar o que deve ou não aceitar da Bíblia, e se arvora em sua intérprete
infalível, está assumindo para si o lugar de Deus. Quando ela prega a devoção a
Maria e aos santos (ainda que diga que venera mas não adora), está usurpando a
Deus da prerrogativa de sua glória exclusiva ("Eu sou o SENHOR, este é o
meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às
imagens de escultura"; Isa 42:8). A doutrina católica, com sua ênfase nos
méritos e obras humanos, rouba a Deus de sua glória exclusiva.
A glória de Deus é o fim para o qual Ele criou todas as coisas. Não é só
o fim principal do homem (conforme o nosso Breve Catecismo), mas o fim de todas
as coisas. É o fim do próprio Deus, como crê John Piper, porque Ele é o bem
supremo (cf. Desiring God, Leicester: Inter-varsity Press, 1990, p. 13). Todas
as coisas, e isso inclui a salvação, visam a glória de Deus, não o bem estar
dos homens (Ef 1:6,12,14). Por isso Deus é glorificado também nos que se
perdem. É o que chamamos de "teocentrismo".
Michael Horton afirma que Lutero lutou para distinguir sua obra de
'reformas' anteriores. Semelhantes a muitos dos movimentos frenéticos de
reforma, renovação e avivamento dos nossos dias, as outras reformas se
preocupavam com moralidade, vida da igreja e mudanças estruturais, mas Lutero
disse: 'Nós visamos a doutrina'. Não que fossem sem importância essas outras
áreas, mas seriam secundárias. Contudo, com sua 'Revolução Copernicana', nasceu
um movimento teocêntrico que teve enormes efeitos sobre a cultura mais ampla. A
orientação da vida e do pensamento centrados em Deus começou no culto, em que o
enfoque era na ação de Deus em sua Palavra e sacramento, em vez de
estar em deslumbrar e entreter as pessoas com pompa e aparato. Quando os
crentes estavam centrados em volta de Deus e sua obra salvífica em Cristo, seus
cultos ajustavam sua visão a outro grau: deixavam de servir como pessoas
mundanas para verem-se como pecadores redimidos, cuja vida só poderia ter um
propósito: glorificar a Deus e gozá-lo para sempre" (Reforma Hoje, São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.124).
E foi devido a esse conceito de que vivemos para Deus e de que para ele
devemos fazer o melhor que a Reforma contribuiu para uma grande revolução não
só no campo religioso, mas no mundo das artes, da ciência e da cultura em
geral. Soli DeoGloria passou a ser o lema não só de reformadores, mas de
músicos (como Bach), pintores (como Rembrandt) e escritores (como Milton), que
apunham às suas obras esta expressiva dedicatória (Ibidem)
Esta visão teocêntrica a Reforma encontrou na Bíblia. Depois de tratar
das doutrinas da salvação, Paulo declara: "Porque dele, e por meio dele, e
para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!"
(Rm 11:36) e, ao concluir sua epístola aos Romanos, louva ao Senhor com estas
palavras: "ao Deus único e sábio seja dada glória, por meio de Jesus
Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém! (16:27). A glória de Deus também foi o
tema do cântico dos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos,
e de todas as criaturas que João ouviu em suas visões, os quais diziam:
"Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e
sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor" (Ap 5:12) e '"Àquele
que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória,
e o domínio pelos séculos dos séculos" (Ap 5:13) e ainda "Ao nosso
Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação...O louvor, e
a glória, e a sabedoria, e as ações de graças, e a honra, e o poder, e a força sejam
ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Amém!" Ap 7:10-12.
Quero concluir citando a esse respeito as palavras de James M. Boice,
ex-pastor da 10ª Igreja Presbiteriana da Filadélfia, recentemente falecido. Ele
diz: Meu argumento é que o motivo pelo qual a igreja evangélica atual está tão
fraca e o porquê de não experimentarmos renovação, embora falemos sobre nossa
necessidade de renovação, é que a glória de Deus foi, em grande, parte
esquecida pela igreja. Não é muito provável vermos avivamento de novo enquanto
não recuperarmos as verdades que exaltam e glorificam a Deus na salvação. Como
podemos esperar que Deus se mova entre nós, enquanto não pudermos dizer de
novo, com verdade: "Só a Deus seja a glória"? O mundo não pode dizer
isso. Ao contrário, está preocupado com sua própria glória. Como Nabucodonozor,
ele diz: Veja essa grande Babilônia que construí pelo meu poder e para minha
glória" . Os arminianos não podem dizê-lo. Podem dizer "a Deus seja a
glória", mas não podem dizer "só a Deus seja a glória", porque a
teologia arminiana tira um pouco da glória de Deus na salvação e a dá para o
indivíduo, que tem a palavra final em dizer se vai ou não ser salvo. Mesmo
aquelas pessoas do campo reformado não podem dizê-lo, se o principal que estão
tentando fazer nos seus ministérios é edificar seus próprios reinos e tornar-se
importantes no cenário religioso. Nunca vamos experimentar a renovação na
doutrina, no culto e na vida enquanto não pudermos dizer honestamente: "só
a Deus seja a glória" (Reforma Hoje, pp. 192-193).
A Reforma nos legou esses grandes temas, que são doutrinas preciosas da
Bíblia. Cabe a nós hoje, seus legatários, dizer se somos ou não dignos
herdeiros dessa herança e continuadores dessa obra. O que cremos e o que
pregamos representa nossa resposta.[6]
Notas:
[6] Biblioteca Reformada: https://www.geocities.com/arpav/biblioteca/
Autor: Rev.João Alves dos Santos
Rev.João Alves dos Santos
É Professor Assistente de Teologia
Exegética (NT) do CPAJ.
É graduado em teologia pelo Seminário Presbiteriano Conservador (B.Th.,
1963); mestre em Divindade e em Teologia do AT pelo Faith Theological Seminary
(M.Div., 1973, e Th.M., 1974) e mestre em Teologia do NT pelo Seminário
Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (Th.M., 1985). É também graduado em
Direito pela Faculdade de Direito de Bauru, SP (1969) e em Letras
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Prof. José A. Vieira,
em Machado, MG (1981). Foi professor de Grego e Exegese do NT no Seminário
Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1980-2004) e professor de Teologia
Sistemática no Seminário Presbiteriano Conservador (1974 -2004). Foi também
professor de Grego e Exegese do NT no Seminário Presbiteriano do Sul (1980
a 1986) e o primeiro coordenador do CPAJ (1991). É ministro da Igreja
Presbiteriana Conservadora do Brasil e membro do corpo editorial da revista
Fides Reformata.
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