“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o
criou..."(Gn 1.27)
Quanto é difícil para a razão natural descobrir uma criação antes de ser
revelada, ou ser revelada para crer nela. As estranhas opiniões dos antigos
filósofos e a infidelidade dos ateus modernos são demonstrações muito tristes.
Correr o mundo de volta à sua infância primeira e original, e ver a natureza
em seu berço, traçar as origens do Ancião de Dias na primeira instância e amostra
do seu poder criativo, é pesquisa muito grande para investigação mortal. E
poderíamos continuar nosso escrutínio até ao fim do mundo, antes que a razão
natural descobrisse a sua origem.
Neste capítulo, temos Deus inspecionando as obras da
criação e deixando esta impressão geral no caráter de cada uma delas: que eram
sobejamente boas. O que a onipotência forjou, temos uma onis-ciência para
ratificar. Mas como se fosse razoável imaginar que há mais de desígnio, e, por
conseguinte, mais de perfeição, na última obra, aqui temos Deus dando seu
último golpe e resumindo tudo no homem, o todo em uma parte, o universo em um
indivíduo. Considerando que em outras criaturas temos senão o rastro dos seus
passos. No homem temos o desenho de sua mão. N’Ele foram unidas todas as perfeições
difundidas da criatura. Todas as graças e ornamentos, todos os aspectos e
características do ser foram resumidos neste pequeno — contudo pleno — sistema
de natureza e divindade; como bem poderíamos imaginar que o grande Artífice iria
mais que normalmente exigir desenhar seu próprio retrato. Em suma, é essa
retidão universal de todas as faculdades da alma, pela qual elas são hábeis e
dispostas a seus respectivos ofícios e operações, que a retidão universal será
mais completamente descrita mediante uma pesquisa distinta sobre ela nas várias
faculdades pertencentes à alma.
I.
No
entendimento.
II.
Na
vontade.
III.
Nas paixões ou
afetos.
I. Primeiramente, para sua faculdade mais nobre, o
entendimento. Era sublime, claro e aspirativo, a região superior da alma,
elevado e sereno, livre dos vapores e perturbações dos afetos inferiores. Era a
faculdade diretiva e controladora; todas as paixões usavam as cores da razão;
não persuadia tanto quanto comandava; não era o cônsul, mas o ditador. O
discurso era quase tão rápido quanto a intuição; era ágil no propósito, firme
na conclusão; logo determinava o que agora disputa.
Como há duas grandes funções da alma, a contemplação e
a prática, de acordo com a divisão geral de objetos, alguns só entretêm nossa
especulação, outros também empregam nossas ações. Assim o entendimento com
relação a estes, não por causa de uma distinção na própria faculdade, é
dividido em entendimento especulativo e entendimento prático, nos quais a
imagem de Deus era aparente.
Era a felicidade de Adão no estado de inocência ter
estas funções claras e limpas. Ele entrou no mundo como filósofo, que
suficientemente aparecia por seus escritos a natureza das coisas em seus nomes;
ele percebia a essência dessas coisas e lia formas sem o comentário de suas
propriedades respectivas; ele via consequências ainda dormentes em seus
princípios, efeitos ainda por nascer e no útero de suas causas; seu
entendimento quase perfurava contingentes futuros, suas conjecturas melhoravam
até chegar à profecia ou certezas de predição; até a Queda, ele era ignorante
de nada mais que o pecado; ou pelo menos descansava na noção, sem a aguilhoada
da experiência. Qualquer dificuldade sendo proposta, a resolução vinha em seguida;
não havia tempo de pôr em dúvida. Não havia meditação, nem luta com a memória,
nem esforço por invenção. Suas faculdades eram velozes e expeditas; respondiam
sem bater, estavam prontas na primeira convocação, havia liberdade e firmeza
em todas as operações.
Confesso que para nós, que datamos a ignorância de
nosso primeiro ser e fomos criados com as mesmas fraquezas com as quais
nascemos, é difícil elevar nosso pensamento e imaginação a essas perfeições
intelectuais que atendiam nossa natureza no tempo da inocência, assim como é
para um camponês, criado na obscuridade de uma cabana, imaginar os esplendores
de um tribunal. Mas avaliando positivamente pelas particularidades e outras
habilidades da razão, pelas quais o discurso abastece a falta de relato dos
sentidos, coletamos agora a excelência do entendimento de então por seus
remanescentes gloriosos, e adivinhamos a pompa do edifício pela magnificência
de suas ruínas. Toda essa destreza, raridade e invenção que mentes vulgares
fixam o olhar, os engenhosos buscam e todos admiram, são apenas as relíquias de
um intelecto deformado pelo pecado e tempo. Hoje admiramos somente como os
antiquários fazem com uma moeda antiga, pela estampa que outrora trazia e não
pelos traços e desenhos desvanecedores que no presente permanecem. Certamente,
devem ter sido muito gloriosos, cujas ruínas são tão admiráveis. Aquele que é
gracioso quando velho e decrépito, com certeza era muito belo quando jovem. Um
Aristóteles era apenas o lixo de um Adão, e Atenas, apenas os rudimentos do
paraíso.
A imagem de Deus era não menos resplandecente no que
chamamos o entendimento prático humano; isto é, o armazém da alma no qual
estão entesourados as normas de ação e as sementes da moralidade. Temos de
observar que muitos que negam todas as noções cognatas no intelecto
especulativo, ainda as admitem nisto. Deste tipo são estas máximas: que Deus
deve ser adorado; que os pais devem ser honrados: que a palavra de um homem
deve ser mantida, a qual, sendo de influência universal quanto ao regulamento
do comportamento e relações do gênero humano, são a base de toda virtude e civilidade e o fundamento da
religião.
Era privilégio do inocente Adão ter estas noções
firmes e imaculadas, levar seu monitor em seu seio, trazer a lei no coração e ter uma consciência tal que
fosse o seu próprio casuísta: e seguramente essas ações devem ser regulares,
onde há uma identidade entre a norma e a faculdade. Sua mente lhe ensinou a
dependência devida a Deus. E esboçou para Ele as proporções e medidas justas de
comportamento para com seus semelhantes. Ele não tinha catecismo, mas a
criação; não precisava de estudo, mas de reflexão; não lia livros, mas o tomo
do mundo, e isto também: não por normas pelas quais trabalhar, mas por objetos
sobre os quais trabalhar. A razão era sua tutora e os primeiros princípios de
sua magna moralia. O Decálogo de Moisés era apenas uma cópia, não o
original. Todas as leis das nações e decretos sábios dos Estados, os estatutos
de Salomão e as doze tábuas, eram somente uma paráfrase desta retitude ereta da
natureza, este princípio frutífero da justiça, que estava a ponto de se
espalhar e ampliar-se em determinações satisfatórias sobre todos os objetos e
ocasiões emergentes. A justiça não era cega para discernir, nem manca para
executar. Não estava sujeita a ser imposta por uma fantasia ilusória, nem a ser
subornada por um apetite lisonjeiro, para virar a balança para uma sentença
falsa e desonesta.
Em todas as direções das faculdades inferiores,
transmitia suas sugestões com clareza e as ordenava com poder; tinha as paixões
em sujeição perfeita; e ainda que seu comando sobre elas fosse persuasivo e
político, não obstante tinha a força da coação e do déspota. Ela não era como é
em nossos dias, onde a consciência tem só o poder de desaprovar e protestar
contra as exorbitâncias das paixões, e antes as deseja do que as faz. Hoje, a
voz da consciência é baixa e fraca, castigando as paixões, como o idoso Eli fez
com seus filhos lascivos e dominadores: Não façam assim, meus filhos, não
façam assim; mas a voz da consciência de então, não era: Isto deve, ou:
Isto deveria ser
feito; mas: Isto deve. Isto será feito. Falava como legislador; a
coisa falada era lei; e a maneira de proferi-la, uma obrigação nova. Em resumo,
havia grande disparidade entre as ordens práticas do entendimento de então e
de hoje, como há entre o império e o conselho, a opinião e a ordem, entre o
companheiro e o governador.
E assim era a imagem de Deus, como brilhava no
entendimento do homem.
II. A seguir, examinaremos a imagem de Deus conforme
estava estampada na vontade. A vontade do homem no estado de inocência tinha
inteira liberdade, uma equidependência perfeita e indiferença a qualquer parte
de contradição, estar ou não estar, aceitar ou não aceitar a tentação. Admito
que a vontade do homem é hoje tanto quanto um escravo que alguém tem, e está
apenas livre para pecar; ou seja, em vez de liberdade, tem somente
licenciosidade. Contudo, certamente isto não é a natureza, mas a casualidade.
Não nascemos tortos; aprendemos estas curvas e sinuosidades da serpente; e,
portanto, é senão uma blasfêmia de ingratidão atribuí-las a Deus e fazer a
praga de nossa natureza a condição de nossa criação.
A vontade era elástica e flexível a todos os
movimentos da razão correta; a meio caminho conhecia os ditames de um
entendimento esclarecido. E as informações ativas do intelecto, enchendo a
recepção passiva da vontade como a fôrma cheia da matéria, desenvolviam-se em
uma terceira e distinta perfeição da prática. O entendimento e a vontade nunca
discordavam; pois as propostas de um nunca contrariavam as inclinações do
outro. Contudo, a vontade nunca servia subservientemente o entendimento, mas
como faz um protegido para com seu príncipe, o serviço era privilégio e
preferência; ou como os servos de Salomão esperavam nele, admirados de sua
sabedoria, ouviam as ordens e conselhos prudentes, a direção e a recompensa de
sua obediência. É realmente a natureza desta faculdade seguir um guia superior,
ser atraída pelo intelecto; mas outrora era atraída como carruagem triunfante,
que ao mesmo tempo segue e triunfa, enquanto obedecia, comandava as outras
faculdades. Era subordinada, não escravizada ao entendimento: não como escravo
ao senhor, mas como rainha ao seu rei, que ambos reconhecem a sujeição e ainda
retêm a majestade.
Passemos agora para uma época anterior do intelecto e
vontade do homem:
III. Para as paixões que têm sua residência e situação
principalmente no apetite sensível. Pois temos de saber que, já que o homem é
uma combinação e mistura de carne e espírito, a alma, durante seu domicílio no
corpo, faz todas as coisas pela mediação dessas paixões e afetos inferiores.
E em primeiro lugar, para o grandioso e principal
afeto de todos, que é o amor. Este é o grande instrumento e motor da natureza,
o elo e vínculo da sociedade, a primavera e espírito do universo. O amor é um
afeto de tal magnitude, que não se pode dizer com acurácia que está na alma
assim como a alma está nele. É o homem inteiro envolto num desejo; são todos os
poderes, vigor e faculdades da alma resumidos numa inclinação. E é dessa
natureza ativa e inquieta que deve por necessidade mostrar-se. Como o fogo, ao
qual é frequentemente comparado, não é um agente livre para escolher se
aquecerá ou não, mas flui por resultados naturais e emanações inevitáveis.
Assim se firmará sobre qualquer objeto inferior e inadequado, em vez de nenhum.
A alma logo deixa de subsistir em vez de amar; como a vinha, murcha e morre se
não tem nada a que se agarrar. Este afeto no estado de inocência foi felizmente
lançado no seu objeto certo: ardeu em diretos fervores de devoção a Deus e em
emissões colaterais de caridade para com o próximo. Não era somente outro nome
mais limpo para a concupiscência. Não tinha nada daquele ardor impuro que tanto
representa quanto merece o inferno. Era uma vestal e um fogo virgem, e diferia
tanto do que normalmente passa hoje em dia por este nome como o calor vital da
queimação de uma febre.
Depois, para a paixão contrária do ódio. Este,
sabemos, é a paixão do desafio, e há um tipo de adversão e hostilidade
incluído em sua essência e ser. Mas (se tivesse havido ódio no mundo, quando
quase não havia coisa abominável) teria agido dentro dos limites do seu
objetivo formal, como o aloés, realmente amargo, mas saudável. Não teria havido
rancor, nem ódio de nosso irmão; uma natureza inocente não odiaria nada que
fosse inocente. Em uma palavra, tão grande é a comutação que a alma somente odiava
o que hoje só ama, ou seja, o pecado.
E se podemos trazer a ira nesta subdivisão, na
qualidade de ser, como afirmam uns, ódio passageiro, ou pelo menos muito
parecido com isso: este também, tão incontrolável quanto agora é, outrora se
expressava pelas medidas da razão. Não havia tal coisa como os arroubos da
malícia ou as violências da vingança; sem retribuição mal por mal, quando o mal
era na verdade uma não-entidade e não se encontrava em lugar algum. A raiva
era como a espada da justiça, afiada, mas inocente e íntegra. Não agia como a
fúria e se chamava zelo. Sempre esposava a honra de Deus e nunca se inflamava
com nada, a não ser para fazer um sacrifício. Centelhava como as brasas no
altar com os fervores da piedade, os ardores da devoção, os ímpetos e vibrações
de uma atividade inocente. No próximo lugar, para a paixão jovial da alegria.
Não era o que hoje usurpa esse nome — a coisa trivial, desvanecedora e
superficial, que apenas enfeita a apreensão e brinca na superfície da alma. Não
era a mera crepitação de espinhos, uma chama súbita dos espíritos, a exultação
de uma fantasia encantada ou um apetite agradável. A alegria era algo robusto e
simples, a recreação do julgamento, o jubileu da razão. Era o resultado de um
bem real, apropriadamente aplicado. Iniciado nas solidificações da verdade e na
substância do gozo. Não se exauriu em vícios ou erupções indecentes, mas encheu
a alma, como Deus faz o universo, silenciosamente e sem alarido. Era
refrescante, mas composto, como a afabilidade da juventude temperada com a
gravidade da idade, ou a hilaridade de uma festa administrada com o silêncio da
contemplação.
E, no outro lado, para a tristeza. Tivesse a perda ou
desastre dado lugar apenas à tristeza, teria movido de acordo com as severas
concessões da prudência e as proporções da provocação. Nunca teria arrancado
queixa ou estardalhaço, nem se espalhado sobre a face e escrito histórias
tristes na testa. Sem espremeduras de mãos, batidas no peito ou desejo de não
ter nascido; o que é tudo isso senão as cerimônias da tristeza, a pompa e
ostentação de um pesar afeminado, que não fala tanto da grandeza da miséria
quanto da pequenez da mente. Lágrimas podem espoliar os olhos, mas não lavam a
aflição. Suspiros podem esvaziar o homem, mas não ejetam o fardo. A tristeza
teria sido tão silenciosa quanto os pensamentos, tão rigorosa quanto a
filosofia. Teria descansado nos sentidos interiores, nas antipatias tácitas e a
cena da tristeza teria sido negociada em reflexões lastimosas e silenciosas.
Depois, mais uma vez, para a esperança. Embora a
plenitude e afluxo dos prazeres humanos no estado de inocência pareçam não
deixar lugar para a esperança, sem relação a outro acréscimo, senão a
prorrogação e continuação futura do que o homem já possuía. Contudo, indubitavelmente
Deus, que não fez a faculdade, mas também a proveu de um objetivo formal no
qual ela exercesse e se gastasse, até em sua maior inocência, então exercitou a
esperança do homem com as expectativas de um paraíso melhor, ou uma admissão
mais íntima consigo mesmo. Não é imaginável que Adão se firmasse em tais prazeres
pobres e tênues como as riquezas, o prazer e as alegrias de uma vida animal. A
esperança era de fato a âncora da alma, ainda que certamente não era para
agarrar-se ou firmar-se em tal lama. E se, como o apóstolo Paulo diz:
"Ninguém espera o que vê", muito menos podia Adão esperar por coisas
que ele via completamente.
E, por último, para a inclinação ao medo. Era o
instrumento da precaução, não da ansiedade; um guarda e não um tormento para o
peito que o tinha. Hoje é na verdade uma infelicidade, a doença da alma; foge
de uma sombra e provoca mais perigos que evita; debilita o julgamento e trai os
socorros da razão, tão difícil é tremer e não errar, e atingir o alvo com mão
tremente. Então o medo se fixou sobre aquele que é o único que deve ser temido:
Deus; e com um medo filial, que ao mesmo tempo teme e ama. Era temor sem
assombro, medo sem distração. Havia uma beleza até na própria palidez. Era a
cor da devoção, dando um brilho à reverência e um polimento à humildade.
Assim as paixões agiam sem seus atuais efeitos
desagradáveis, combates ou repugnâncias, tudo se movendo com a beleza da uniformidade
e a quietude da compostura. Como um exército bem governado, não para a guerra,
mas para a dignidade e ordem. Confesso que as Escrituras não atribuem
expressamente estes vários dons a Adão em seu primeiro estado. Mas tudo o que
eu disse, e muito mais. pode ser extraído daquele pequeno aforismo: Deus fez
o homem reto. E visto que as fraquezas opostas infestam hoje a natureza do
homem caído, se queremos ser verdadeiros à regra dos contrários, temos de
concluir que essas perfeições eram a sorte do homem inocente.
Desta compostura tão exata e regular das faculdades,
tudo se movendo para o seu devido lugar, cada um golpeando em seu tempo
adequado, ali surgiu, mediante conseqüência natural, a culminante perfeição de
tudo, uma boa consciência. Como no corpo quando as partes principais, como o
coração e o fígado, desempenham suas funções e todos os vasos inferiores e
menores agem ordenada e apropriadamente, ali surge um doce prazer sobre o todo
que chamamos de saúde. Assim na alma, quando as supremas faculdades da vontade
e do entendimento se movimentam regularmente, as paixões inferiores e os
afetos se seguem, ali surge uma serenidade e desvanecimento sobre toda a alma,
infinitamente além dos maiores prazeres físicos, a mais alta quinta-essência e
elixir das delícias mundanas. Há neste caso um tipo de fragrância e perfume
espiritual na consciência, muito parecido com o que Isaque falou das roupas do
filho, que o cheiro delas era como o cheiro do campo que o Senhor tinha
abençoado. Tal frescor e sabor encontram-se na alma quando é diariamente regada
com as ações de uma vida virtuosa. Tudo o que é puro também é agradável.
Tendo inspecionado a imagem de Deus na alma do homem,
não devemos omitir as características da majestade que Deus imprimiu no corpo.
Ele também desenhou alguns traços de sua imagem no corpo. tanto quanto uma
substância espiritual é impressa numa substância corpórea. Adão não era menos
glorioso em sua aparência exterior; ele tinha um corpo bonito, como também uma
alma imortal. Toda essa combinação era como um templo bem-construído, imponente
por fora, sagrado por dentro. Em seu corpo, os elementos estavam em perfeita
união e acordo; e suas qualidades contrárias não serviam para a dissolução da
combinação, mas para a variedade da compostura. Galeno, que não tinha mais
divindade do que a sua compleição o ensinava, apenas na consideração desta
estrutura tão exata do corpo desafia qualquer um, depois de cem anos de estudo,
a achar a menor fibra ou a partícula mais minuciosa que seja colocada mais espaçosamente,
quer para a vantagem de uso ou para a boa aparência. A estatura se ergue e
tende para cima ao seu centro; o semblante majestoso e gracioso, com o brilho
de uma beleza nativa que desprezava a escassa ajuda da arte ou os esforços da
imitação; o corpo de tamanha rapidez e agilidade que não só continha, mas
também representava a alma; pois, bem que podemos supor que onde Deus depositou
tão rica jóia, Ele adornaria a caixa adequadamente. Era um asilo de indigentes
conveniente para as faculdades vividas e alegres se exercitarem e se
mostrarem. O tabernáculo próprio para a alma imortal não só habitar, mas
contemplar, onde veria o mundo sem se deslocar; sendo um esquema inferior da
criação, a natureza contraiu uma pequena cosmografia ou mapa do universo. O
corpo também não estava sujeito à enfermidade, morrer pouco a pouco e adoecer
ou definhar-se. Adão não conheceu a doença, enquanto a temperança do fruto
proibido o afiançava. A natureza era sua médica; e a inocência e abstinência o
teriam mantido são até à imortalidade.
O uso deste ponto pode ser diverso, mas no momento
será apenas este-, para nos fazer lembrar da perda irreparável que sustentamos
em nossos primeiros pais, para nos mostrar que justa porção Adão deserdou toda
a sua posteridade através de uma única prevaricação. Imagine um homem no verdor
e plenitude de sua mocidade e nos últimos dias e declinações de seus anos
decadentes, e você mal reconhece o que pertence à mesma pessoa; requereria
mais destreza para discerni-lo do que para desenhá-lo no princípio. A mesma e
maior é a diferença entre o homem inocente e o caído. Ele é um novo tipo ou
espécie; a praga do pecado alterou sua natureza e corroeu seus próprios
fundamentos. A imagem de Deus foi apagada, as criaturas sacudiram o jugo, renunciaram
a soberania do homem e se revoltaram com o seu domínio. Desordens e doenças
romperam a excelente estrutura do corpo; e, por uma nova dispensação, a
imortalidade foi tragada pela mortalidade. O mesmo desastre e decadência
também invadiu a sua espiritualidade: as paixões se rebelaram, todas as faculdades
usurparam e governaram, e há tantos governantes que não pode haver governo. A
luz dentro de nós tornou-se trevas, e o entendimento, que seriam os olhos para
a faculdade cega da vontade, está cego, e, desse modo, traz todas as
inconveniências que acompanham um seguidor cego sob a conduta de um guia cego.
Aquele que teria uma demonstração clara e ocular disso, que reflita sobre a
numerosa desordem de opiniões estranhas, insensatas e absurdas que se embrenham
pelo mundo para a desgraça da razão e a repreensão incontestável de um
intelecto subjugado.
As duas grandes perfeições que adornam e exercitam o
entendimento humano são a filosofia e a religião. Para a primeira, tome-a até
entre seus professores onde a maioria floresceu, e descobriremos que as
primeiríssimas noções do bom senso são debochadas por eles. Houve quem
afirmasse que não há tal coisa no mundo como movimento; as contradições podem
ser verdades. Não houve quem quisesse negar que a neve é branca. Tal estupidez
ou capricho tinha prendido a mais sublime sagacidade que possa ser duvidada se
os filósofos ou as corujas de Atenas eram de visão perspicaz. Mas para a
religião, que nascimentos prodigiosos, monstruosos e disformes têm produzido a razão
do homem caído! Faz quase seis mil anos que a maior parte do mundo não teve
outra religião que a idolatria; e a idolatria certamente é a primeira — nascida
da loucura, o grande e principal paradoxo; de fato, o próprio resumo e soma
total de todas as absurdidades. Não é estranho que um homem racional adore um
boi, não, a imagem de um boi, que ele bajule o cachorro, curve-se diante de um
gato, adore porros e alhos e derrame lágrimas penitenciais ao cheiro de uma
cebola divinizada? Assim fizeram os egípcios, outrora os afamados mestres de
todas as artes e aprendizagem. E um pouco mais adiante, temos instância ainda
mais estranha em Isaías: [um homem] tomou para si cedros. [...] Então, servirão
ao homem para queimar. [...] Então, do resto faz um deus" (Is
44.14,15,17). Com uma parte ele abastece a chaminé, com a outra, a capela.
Coisa estranha que o fogo tenha de consumir esta parte e, depois, queimar
incenso para ela. Como se houvesse mais divindade numa ponta da vara do que na
outra; ou como se fosse gravado e pintado onipotente, ou os pregos e o martelo
lhe dessem uma apoteose. É tão grande a mudança, tão deplorável a degradação de
nossa natureza que, considerando que antes trazíamos a imagem de Deus, agora
só retemos a imagem dos homens.
Em último lugar, aprendemos que a excelência da
religião crista nesse fato é o grande e único meio que Deus santificou e
projetou para consertar as brechas da humanidade, levantar novamente o homem
caído, esclarecer a razão, retificar a vontade e compor e regular os afetos. A
questão de nossa redenção é, em suma, apenas esfregar em cima da cópia
desfigurada da criação, reimprimir a imagem de Deus na alma e apresentar a
natureza numa segunda c mais justa edição.
A recuperação de tal imagem perdida, como é o prazer de
Deus ordenar e nosso dever empreender, está, assim, somente em seu poder
efetuar.
Créditos: CPAD
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