Sermão de CHARLES SPURGEON, SERMÃO PREGADO NA MANHÃ DE DOMINGO, 22 DE ABRIL, 1855, EM EXETER HALL, STRAND, LONDRES.

“Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus.”
Romanos 8:7
“Já que a mente posta na carne é inimiga de Deus.”
(A Bíblia das Américas)
Esta é uma denúncia muito solene que o apóstolo Paulo formula contra a mente carnal.  Ele  a  declara  como  inimiga  de  Deus.  Quando  relembramos  o  que  o homem  foi  uma  vez,  considerado  apenas  um  pouco  menor  do  que  os  anjos; aquele companheiro que passeava com Deus no jardim do Éden durante o dia. Quando pensamos que o homem foi criado à imagem de seu Criador, puro, sem mancha e imaculado, não podemos nos sentir nada menos do que amargamente afligidos ao descobrir uma acusação como esta,  proferida contra nós como raça. Devemos  pendurar  nossas  harpas  sobre  os  salgueiros  ao  ouvir  a  voz  de  Deus, quando fala solenemente à Sua criatura rebelde.

“Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Tu  eras  o  selo  da  medida,  cheio  de  sabedoria  e  perfeito  em formosura.Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura,... em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados.Tu eras o querubim, ungido para cobrir,  e te estabeleci;  no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. Perfeito  eras  nos  teus  caminhos,  desde  o  dia  em  que  foste  criado, até que se achou iniqüidade em ti. Na multiplicação do teu comércio encheram  o  teu  interior  de  violência,  e  pecaste;  por  isso  te  lancei, profanado, do monte de Deus, e te fiz perecer, ó querubim cobridor, do meio das pedras afogueadas.”
Sentimos-nos  extremamente  tristes  quando  contemplamos  as  ruínas  de  nossa raça.  Como  o  cartaginense  que  ao  pisar  o  lugar  desolado  de  sua  mui  amada cidade, derramou lágrimas abundantes quando a viu convertida em escombros pelos exércitos romanos; ou como o judeu que perambulava pelas ruas desertas de Jerusalém, enquanto lamentava que a grade do arado tivesse desfigurado a beleza  e  a  glória  dessa  cidade  que  era  a  alegria  de  toda  a  terra;  assim  deveria doer em nós, por nossa raça, quando contemplamos as ruínas dessa excelente estrutura  que  Deus  formou,  essa  criatura  sem  rival  em  simetria,  com  um intelecto  superado  somente  pelo  intelecto  dos  anjos,  esse  poderoso  ser,  o homem,  quando  contemplamos  como  caiu,  e  caiu,  e  caiu  de  sua  elevada condição, convertido em uma massa de destruição. Há alguns anos atrás, podíamos observar uma estrela que resplandecia com um brilho inusitado, mas subitamente desapareceu; chegaram a fazer conjeturas de que  se  tratava  de  um  mundo  que  ardia  a  bilhões  de  quilômetros  de  nós,  mas ainda  assim,  os  raios  dessa  conflagração  chegaram  até  nós;  o  silencioso mensageiro  de  luz  deu  o  alarme  aos  remotos  habitantes  deste  globo:  “um mundo arde!” Mas, que importância tem a conflagração de um planeta distante; o  que  é  a  destruição  do  elemento  material  do  mundo  mais  gigantesco, comparada com esta queda da humanidade, com este naufrágio de tudo o que é santo e sagrado em nós? Para nós, na verdade, as coisas dificilmente se podem comparar, pois estamos profundamente interessados em uma destruição, mas não na outra. A queda de Adão  é  NOSSA  queda;  caímos  nele  e  com  ele;  sofremos  da  mesma  maneira; lamentamos  a  ruína  de  nossa  própria  casa,  deploramos  a  destruição  de  nossa própria  cidade,  quando  nos  detemos  para  captar  estas  palavras  escritas  de forma tão clara que não podem ser mal interpretadas: “A inclinação da carne” (esses  mesmos  desígnios  que  uma  vez  foram  santos,  e  que  passaram  a  ser carnais),  “são  inimizade  contra  Deus.”  Que  Deus  me  ajude  nesta  manhã  a formular  solenemente  esta  denúncia  contra  todos  vocês!  Oh,  que  o  Espírito Santo nos convença de tal modo do pecado, que unanimemente nos declaremos “culpados”  diante  de  Deus!  Não  há  nenhuma  dificuldade  na  interpretação  do meu  texto:  mal  necessita  uma  explicação.  Todos  nós  sabemos  que  a  palavra “carnal” aqui significa a natureza pecaminosa. Os antigos tradutores colocavam a passagem assim: “a mente posta na carne é inimiga de Deus”, ou seja, a mente não  regenerada,  essa  alma  que  herdamos  de  nossos  pais,  essa  natureza pecaminosa  que  nasceu  em  nós  quando  nossos  corpos  foram  formados  por Deus.  A  mente  não  regenerada,  phronema  sarkos,  os  desejos,  as  paixões  da alma; isto é o que se separou de Deus e se converteu em Seu inimigo.Mas  antes  que  entremos  em  uma  discussão  da  doutrina  do  texto,  observem  a forma  vigorosa  como  o  apóstolo  se  expressa:  “A  inclinação  da  carne,”  diz,  “é INIMIZADE contra Deus.” Ele usa um substantivo, e não um adjetivo. Não diz que  simplesmente  se  opõe  a  Deus,  mas  sim  que  se  trata  de  uma  inimizade positiva. Não é o adjetivo negro, e sim o substantivo negrura; não é inimizado e sim  a  inimizade  mesma;  não  é  corrupto,  mas  sim  a  corrupção;  não  é  rebelde, mas  sim  a  rebelião;  não  é  perverso,  mas  sim  a  perversão  mesma.  O  coração ainda  que  seja  enganoso,  é  engano  positivo;  é  o  mal  concreto,  pecado  na  sua essência;  é  a  destilação,  a  quintessência  de  todas  as  coisas  que  são  vis;  não  é invejoso de Deus, é a própria inveja; não está inimizado, é a inimizade real. Não precisamos dizer uma palavra para explicar que é “inimizade contra Deus.” Não acusa a natureza humana de ter simplesmente uma aversão ao domínio,  às leis,  ou  às  doutrinas  de  Deus;  mas  sim  que  atesta  um  golpe  mais  profundo  e mais  preciso.  Não  golpeia  o  homem  na  cabeça,  mas  penetra  em  seu  coração; coloca o machado na raiz da árvore, e declara “inimizade contra Deus,” contra a pessoa  da  Deidade,  contra  o  Ser  Supremo,  contra  o  poderoso  Criador  deste mundo;  não  inimizado  contra  Sua  Bíblia  ou  contra  Seu  Evangelho,  ainda  que isso  seja  verdade,  mas  sim  contra  Deus  mesmo,  contra  Sua  essência,  Sua existência,  e  Sua  pessoa.  Sopesemos  então  as  palavras  do  texto,  pois  são palavras solenes. Estão muito bem expressadas por esse maestro da eloquência, Paulo  e,  além  disso,  foram  ditadas  pelo  Espírito  Santo,  que  ensina  ao  homem como  se  expressar  corretamente.  Que  nos  ajude  a  interpretar  esta  passagem, que nos deu previamente para Sua explicação. O texto nos pede que tomemos nota, primeiro, da veracidade desta afirmação; em segundo lugar, da universalidade do mal que nos aflige; em terceiro lugar, vamos  descer  ainda  mais  às  profundezas  do  tema  com  a  intenção  de  que  o gravem em seu coração, ao demonstrar a enormidade do mal; e depois disso, se o tempo alcança, vamos extrair uma doutrina ou duas do fato geral.
I. Primeiro, nos convida a falar sobre a veracidade desta grande declaração: “a inclinação  da  carne  é  inimizade  contra  Deus.”  Não  requer  provas,  pois  como está  escrito  na  palavra  de  Deus,  nós,  como  cristãos,  estamos  obrigados  a inclinar-nos  diante  dela.  As  palavras  da  Escritura  são  palavras  de  sabedoria infinita,  e  se  a  razão  é  incapaz  de  ver  o  fundamento  de  uma  declaração  desta revelação,  está  obrigada  a  crer  nela  mui  reverentemente,  pois  estamos convencidos que ainda que esteja acima de nossa razão, não pode ser contrária a ela. Aqui  encontro  que  está  escrito  na  Bíblia:  “A  inclinação  da  carne  é  inimizade contra Deus”; e isso, em si, me basta. Mas se fossem necessárias testemunhas, convocaria às nações da antiguidade; desenrolaria o volume de história antiga; comentaria-lhes  os  fatos  terríveis  da  humanidade.  Quem  sabe  comoveria  suas almas até o aborrecimento, se lhes falasse da crueldade desta raça para consigo mesma, se lhes mostrasse como converteu a este mundo em Aceldama por suas guerras,  e  o  inundou  com  sangue  por  suas  lutas  e  assassinatos;  se  lhes enumerasse  a  negra  lista  de  vícios  em  que  caíram  nações  inteiras,  ou  lhes apresentasse as características de alguns dos mais eminentes filósofos, sentiria vergonha de falar deles e vocês se negariam a escutar. Sim, seria impossível que vocês, como refinados habitantes de um país civilizado, suportassem a menção dos crimes que foram cometidos por esses mesmos homens que hoje em dia são alçados como modelos de perfeição. Tenho medo de que se escrevêssemos toda a verdade, abandonaríamos a leitura das vidas dos mais poderosos heróis e dos sábios  mais  orgulhosos  da  terra,  e  diríamos  de  imediato  de  todos  eles:
“Desviaram-se  todos,  e  juntamente  se  fizeram  imundos;  não  há  quem  faça  o bem, não, nem sequer um.”
E se isso não fora suficiente, quero fazê-los ver os erros dos pagãos; quero falarlhes  das  superstições  de  seus  sacerdotes  que  submeteram  as  almas  à superstição; quero que sejam testemunhas das horríveis obscenidades, dos ritos diabólicos  que  constituem  as  coisas  mais  sagradas  para  estes  ofuscados indivíduos. Então, depois de terem ouvido o que constitui a religião natu ral do homem, eu pediria a vocês que me explicassem o que seria sua irreligião. Se esta é  sua  devoção,  qual  seria  sua  impiedade?  Se  este  é  seu  ardente  amor  pela Deidade,  qual  seria  seu  ódio  à  mesma?  Estou  certo  que  vocês  de  imediato confessariam, se soubessem o que é na natureza humana, que a denúncia está sustentada  e  que  o  mundo  deve  exclamar  sem  reservas,  sinceramente: “culpado”.Posso  encontrar  um  argumento  adicional  no  fato  de  que  as  melhores  pessoas têm sido sempre as mais dispostas a confessar sua  depravação. Os homens mais santos,  os  que  estão  mais  livres  de  impurezas,  sempre  sentiram  com  mais intensidade  a  sua  depravação.  O  que  tem  suas  vestes  mais  brancas,  perceberá melhor  as  manchas  que  caiam  nelas.  O  que  possui  a  coroa  mais  reluzente, saberá  quando  perdeu  uma  pedra  preciosa.  O  que  dá  mais  luz  ao  mundo, sempre será capaz de descobrir sua própria escuridão. Os anjos do céu cobrem seus  rostos;  e  os  anjos  de  Deus  na  terra,  Seu  povo  escolhido,  sempre  devem cobrir seus rostos com a humildade, quando se lembram do que foram. Escutem a Davi: ele não era desses que se vangloriam de uma natureza santa e de  uma  disposição  pura.  Ele  diz:  “Eis  que  em  iniquidade  fui  formado,  e  em pecado me concebeu minha mãe.” Muitos  desses  santos  homens  escreveram  aqui,  neste  volume  inspirado,  e encontraremos a todos confessando que não eram limpos, não, nem um sequer; e um deles exclamou: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?” Além disso, chamarei a outra testemunha para que testifique a veracidade deste fato,  e  que  decidirá  a  questão:  será  sua  própria  consciência.  Consciência,  te colocarei  no  banco  das  testemunhas  para  interrogar-te  esta  manhã! Consciência,  diga  a  verdade!  Não  te  drogues  com  o  ópio  da  segurança  em  ti mesma! Testifica a verdade! Nunca ouviste dizer ao coração: “queria que Deus não existisse”? Por acaso todos os homens não desejaram,  algumas vezes, que nossa religião não fosse verdadeira? Ainda que não puderam livrar suas almas inteiramente  da  ideia  da  Deidade,  por  acaso  não  desejaram  que  não  existisse Deus?  Não  acariciaram  o  desejo  de  que  todas  estas  realidades  divinas  fossem um engano, uma farsa e uma impostura? “Sim,” responde cada indivíduo, “isso me ocorreu algumas  vezes; desejei poder entregar-me à insensatez. Desejei que não  houvessem  leis  que  me  restringissem;  desejei,  como  o  insensato,  que  não houvesse Deus.” Essa  passagem  dos  Salmos  que  diz:  “DISSE  o  néscio  no  seu  coração:  não  há Deus,” está mal traduzida. A  tradução correta deveria ser: “Diz o néscio no seu coração: não aceito a Deus. O néscio não diz em seu coração não há Deus, pois ele sabe que há um Deus; Ao contrário, afirma: “Não aceito a Deus, não preciso de nenhum Deus, queria que não existisse nenhum”  E, quem de nós não foi tão insensato que não chegou a desejar que não houvesse Deus? Agora, consciência, responde outra pergunta! Tu confessaste que algumas vezes desejaste que não existisse Deus; então, suponhamos que um homem desejasse a morte de outro. Acaso isso não demonstraria o seu ódio? Sim, demonstraria. E assim,  meus  amigos,  o  desejo  de  que  Deus  não  exista,  demonstra  que  temos aversão  a  Deus.  Quando  desejo  a  morte  de  outro  e  que  apodreça  no  túmulo; quando  desejo  que  seja  um  non  est  (um  ser  inexistente),  devo  odiar  a  esse homem; de outra forma não desejaria que fosse um ser extinto. Assim que esse desejo  (e  não  creio  que  haja  existido  alguém  no  mundo  que  não  o  houvesse sentido), demonstra que “a inclinação da carne é inimizade contra Deus.” Mas, consciência, tenho outra pergunta! Acaso não desejaste alguma vez em teu coração, posto que há um Deus, que Ele fosse um pouco menos santo, um pouco menos  puro,  de  tal  maneira  que  essas  coisas  que  agora  são  graves  crimes, pudessem  ser  consideradas  ofensas  veniais,  simples  pecadinhos?  Acaso  não disseste  nunca  em  teu  coração:  “Queria  que  estes  pecados  não  fossem proibidos”.  Queria  que  Ele  fosse  misericordioso  para  que  os  esquecesse  sem requerer nenhuma expiação! Queria que não fosse tão severo, tão rigorosamente justo, tão severamente estrito na Sua integridade.” Coração meu, nunca disseste isso?  A  consciência  deve  responder:  “Eu  disse.”  Bem,  esse  desejo  de  mudar  a Deus, demonstra que não amas a Deus que é o Deus do céu e da terra; e ainda que  fales  de  religião  natural,  e  te  glories  de  reverenciar  ao  Deus  dos  verdes campos,  dos  prados  férteis,  das  águas  abundantes,  do  retumbar  do  trovão,  do céu azul, da noite estrelada, e do grandioso universo: ainda que tu ames o belo ideal  poético  da  Deidade,  não  se  trata  do  Deus  da  Escritura,  pois  tu  desejaste mudar Sua natureza,  e nisso demonstraste  que estás  inimizado com Ele. Mas, consciência, por que devo ficar fazendo rodeios? Tu podes ser uma testemunha fiel, se queres dizer a verdade, que cada pessoa aqui presente transgrediu de tal maneira  contra  Deus,  quebrou tão  continuamente  Suas  leis,  violou  Seu  dia  de repouso,  espezinhou  Seus  estatutos,  depreciou  Seu  Evangelho,  que  é  muito certo, ai, sumamente certo que “a inclinação da carne é inimizade contra Deus.”
II. Agora, em segundo lugar, tomemos nota da universalidade deste mal. Quão vasta é esta afirmação. Não é uma mente carnal singular, ou uma certa classe de características, senão “os desígnios da carne.” É uma afirmação sem restrições, que  inclui  a  cada  indivíduo.  Qualquer  mente  que  possa  apropriadamente  ser chamada carnal, se não foi espiritualizada pelo poder do Espírito Santo de Deus, é “inimizade contra Deus.” Observem  então,  em  primeiro  lugar,  a  universalidade  disto  relativa  a  todas  as pessoas. Toda mente carnal no mundo está inimizada com Deus. Isto não exclui nem sequer os bebês que se alimentam do peito da mãe. Nós os chamamos de inocentes, e na realidade são inocentes de transgressões reais, mas como diz o poeta:  “no  peito  mais  terno  jaz  uma  pedra”.  Na  mente  carnal  de  um  bebê  há inimizade contra Deus; não está desenvolvida, mas está ali. Alguns afirmam que as  crianças  aprendem  a  pecar  por  imitação.  Mas  não:  Peguem  uma  criança, coloquem-na  sob  as  influências  mais  piedosas,  se  assegurem  que  o  próprio  ar que  respira seja purificado pela piedade, que saboreie santidade,  que somente escute  a  voz  da  oração  e  do  louvor;  que  seus  ouvidos  se  mantenham  afinados pelas notas do hino sagrado; e apesar de tudo isso, essa criança pode ainda se converter em um dos mais depravados transgressores; e ainda que na aparência esteja pronta em direção ao caminho do céu, descerá diretamente ao abismo se não é guiada pela graça divina. Oh, quão certo é que alguns que tiveram os melhores pais, tenham se convertido nos piores filhos; que muitos que foram treinados sob a égide sagrada, em meio às mais favoráveis cenas de piedade, se converteram, contudo, em libertinos e dissolutos! Assim que não é por imitação, mas sim, pela natureza que a criança é má. Concordemos que a  criança é carnal, pois meu texto diz: “a inclinação da carne é inimizade contra Deus”. Escutei  que  um  crocodilo  recém-nascido,  quando  sai  de  sua  casca,  no  mesmo instante  se  coloca  em  posição  de  ataque,  abrindo  sua  mandíbula  como  se houvesse  sido  ensinado  ou  treinado.  Sabemos  que  os  jovens  leões  quando são domados e domesticados, conservam a natureza selvagem de seus semelhantes da  selva,  e  se  os  colocassem  em  liberdade,  caçariam  tão  ferozmente  como  os outros. O  mesmo  acontece  com  a  criança;  podes  amarrá-la  com  os  verdes  juncos  da educação, podes fazer o que quiseres com ele, mas como não podes mudar seu coração,  estes  desígnios  da  carne  estarão  inimizados  com  Deus;  e  apesar  do intelecto, do talento, e de tudo o que possam dar-lhe que seja proveitoso, será da mesma  natureza  pecaminosa  como  qualquer  outra  criança,  ainda  que  na aparência sua natureza não seja tão má; pois “a inclinação da carne é inimizade contra Deus.” E se isto se aplica às crianças, igualmente inclui toda a classe de homens. Há alguns homens que nasceram neste mundo dotados de espíritos superiores, que caminham por todos os lados como gigantes envoltos em mantos de luz e glória.  Refiro-me  aos  poetas,  homens  que  se  destacam  como  colossos,  mais poderosos que nós, que aparentam haver descido das esferas celestiais. Outros há,  de  intelecto  afiado,  que  investigando  os  mistérios  da  ciência,  descobrem coisas  que  estiveram  ocultas  desde  a  criação  do  mundo;  homens  de  tenaz investigação  e  de  vasta  erudição;  e,  contudo,  de  cada  um  destes  (poetas, filósofos, metafísicos e grandes descobridores), se dirá: “a inclinação da carne é inimizade contra Deus.” Poderá treiná-lo, converter seu intelecto em algo quase angelical, fortalecer sua alma até que entenda o que constitui enigmas para nós, e os decifre com seus dedos  num  instante;  poderás  fazê-lo  tão  poderoso  que  possa  entender  os segredos ferrenhos dos montes eternos e pulverizá-los com seu punho; poderás dar-lhe um olho tão perspicaz que possa penetrar os mistérios das rochas e das montanhas;  poderás  agregar-lhe  uma  alma  tão  poderosa  que  possa  matar  a gigantesca  Esfinge,  que  por  muito  tempo  confundiu  os  sábios  mais  notáveis; mas mesmo que tenhas feito tudo isto, sua mente será depravada e seu coração carnal ainda estará em oposição a Deus. E, ainda mais, podes levá-lo à casa de oração; podes expô-lo constantemente à pregação mais clara do mundo, onde escutará as doutrinas da graça em toda a sua pureza, e pregação acompanhada de santa unção; mas se essa santa unção não  descansa  nele,  tudo  haverá  sido  em  vão:  pode  ser  que  assista  com  toda regularidade, mas, igual à piedosa porta da capela, que gira para dentro e para fora,  ele  seguirá  sendo  igual;  poderá  ter  uma  religião  superficial  externa,  mas sua mente carnal estará inimizada com Deus. Agora, esta não  é uma afirmação minha, é  a declaração  da palavra de Deus, e podem  colocá-la  de  lado  se  não  acreditam  nela;  mas  não  discutam  comigo,  já que é a mensagem do meu Senhor; e é válida para cada um de vocês: homens, mulheres  e  crianças,  e  para  mim  também,  que  se  não  somos  regenerados  e convertidos,  se  não  experimentamos  uma  mudança  de  coração,  nossa  mente carnal está inimizada contra Deus. Além  disso,  tomem  nota  da  universalidade  disto  em  todo  momento.  A  mente carnal está em todo momento inimizada com Deus. “Oh,” alguém dirá, “pode ser verdade  que  às  vezes  nos  opomos  a  Deus,  mas  certamente  nem  sempre  nos opomos.” “Há momentos,” dirá alguém, “quando sinto que me rebelo, algumas vezes  minhas  paixões  me  conduzem  a  desviar-me;  mas  certamente  há  outras ocasiões  favoráveis  quando  realmente  sou  amigável  com  Deus,  e  lhe  ofereço verdadeira  devoção.  Às  vezes  estive  (continua  o  impugnador),  no  cume  da montanha,  até  que  toda  minha  alma  se  acendeu  com  a  cena  contemplada abaixo, e meus lábios pronunciaram o hino de louvor— “Estas são Tuas gloriosas obras, Pai de bondade,Todo poderoso, Tua é esta estrutura universal,Tão bela e maravilhosa: quão maravilhoso és Tu!”Sim,  mas  preste  atenção,  o  que  é  verdade  hoje,  não  é  falso  amanhã;  “a inclinação da carne é inimizade contra Deus” todo o tempo. O lobo poderá estar adormecido, mas continua sendo lobo. A serpente, com seus tons camaleônicos, pode dormitar no meio das flores, e a criança pode acariciar seu dorso liso, mas continua  sendo  uma  serpente;  não  muda  sua  natureza  ainda  que  esteja adormecida. O mar é o albergue das tormentas, ainda que esteja plácido como um lago; o trovão continua sendo o trovão que retumba poderosamente, ainda que se encontre tão longe que não possamos escutá-lo. E o coração, ainda que não percebamos suas ebulições, ainda que não vomite sua lava, e não jogue as ferventes rochas de sua corrupção, continua sendo o mesmo temível vulcão. Em todo  momento,  a  todas  horas,  a  cada  instante  (digo  isto  segundo  o  que  Deus diz), se vocês são carnais, cada um de vocês é inimizado contra Deus.Temos  outro  pensamento  relativo  à  universalidade  deste  enunciado.  Todos  os desígnios  da  carne  são  inimizade  contra  Deus.  O  texto  diz:  “A  inclinação  da carne  é  inimizade  contra  Deus”;  isto  é,  todo  o  homem,  cada  parte  dele:  cada poder, cada paixão. Seguidamente  se  perguntam:  “Que  parte  do  homem  foi  afetada  pela  queda?” pensam que a queda somente foi sentida pelos sentimentos, mas que o intelecto permaneceu  incólume;  eles  argumentam  isto  sustentados  na  sabedoria  do homem, e os impressionantes descobrimentos que foram feitos, tais como a lei da gravidade, a máquina a vapor e as ciências. Agora, eu considero estas coisas como uma exposição insignificante de sabedoria, quando as comparamos com o que se descobrirá dentro de cem anos, e diminutas quando comparadas com que o que se poderia descobrir caso o intelecto humano houvesse permanecido em sua condição original. Eu creio que a queda esmagou o homem completamente. Ainda  que  quando  passou  como  uma  avalanche  sobre  o  poderoso  templo  da natureza  humana,  alguns  elementos  permaneceram  intactos,  e  em  meio  às ruínas se pode encontrar por aqui e por ali, uma flauta, um pedestal, uma coroa, uma coluna, que não estão completamente quebrados, a estrutura inteira caiu, e suas relíquias mais gloriosas são coisas caídas, fundidas no pó. O  homem  completo  está  estropiado.  Olhem  nossa  memória;  acaso  não  é verdade  que  a  memória  participa  da  queda?  Eu  posso  recordar  muito  mais  as coisas más que as coisas que tem cheiro de piedade. Se  eu escuto uma canção lasciva,  essa  música  do  inferno  ficará  em  meus  ouvidos  até  que  eu  fique grisalho.  Mas  se  escuto  uma  nota  de  santo  louvor:  ai!,  me  esqueço!  Por  que  a memória aperta com mão de ferro as coisas más, mas sustém com dedos frágeis as coisas  boas. A memória permite que o cedro glorioso dos bosques do Líbano flutue sobre a corrente do esquecimento, mas retém toda a imundície que chega flutuando da depravada cidade de Sodoma. A  memória  recordará  o  mal,  mas  esquecerá  o  bem.  A  memória  participa  da queda. O mesmo ocorre com os afetos. Amamos as coisas terrenas mais do que deveríamos  amá-las;  rapidamente  entregamos  nosso  coração  a  uma  criatura, mas raras vezes o oferecemos ao nosso Criador; E quando o coração é entregue a Jesus, é propenso a se extraviar. Olhem a nossa imaginação também. Oh! Como se deleita a imaginação quando o  corpo  se  encontra  em  uma  condição  perniciosa.  Somente  dêem  ao  homem algo que o leve a ponto de intoxicar-se; droguem-no com ópio; e como dançará sua  imaginação  cheia  de  alegria!  Como  pássaro  liberto  de  sua  jaula,  como  se renovará  com  asas  mais  vigorosas  que  as  asas  da  águia!  Vê  coisas  que  nem sequer havia sonhado nas sombras da noite. Por que razão sua imaginação não trabalhou  quando  seu  corpo  se  encontrava  em  um  estado  normal,  quando  era saudável? Simplesmente porque a imaginação é depravada; e enquanto não se introduziu  um  elemento  imundo,  enquanto  o  corpo  não  havia  começado  a estremecer-se com um tipo de intoxicação, a fantasia não pensava celebrar seu carnaval. Temos alguns esplêndidos exemplos do que o homem pode escrever, quando  influenciado  pela  maldita  aguardente.  Pelo  fato  de  que  a  mente  é  tão depravada, ela  se encanta com tudo aquilo que põe o corpo em uma condição anormal; e aqui temos uma prova que a própria imaginação se extraviou.O  mesmo  acontece  com  o  juízo:  posso  demonstrar  quão  imperfeitamente decide. Também posso acusar a consciência, e dizer-lhe quão cega é ela, e  como lhe  cintila  o  olho  ante  os  maiores  desatinos.  Posso  examinar  todos  nossos poderes, e escrever na frente de cada um deles: “Traidor ao céu! Traidor ao céu!” Toda “a mente posta na carne é inimiga de Deus”. Agora, meus queridos leitores, “somente a Bíblia é a religião dos protestantes”: mas sempre que reviso um certo livro tido em grande estima por nossos irmãos anglicanos,  o  encontro  inteiramente  ao  meu  lado,  e  invariavelmente  sinto  um grande  deleite  ao  citá-lo.  Vocês  sabem  que  sou  um  dos  melhores  clérigos  da Igreja  da  Inglaterra,  o  melhor,  se  me  julgarem  pelos  Artigos,  e  o  pior  se  me julgarem por qualquer outra norma?Meçam-me pelos Artigos da Igreja da Inglaterra, e não ocuparia o segundo lugar ante ninguém abaixo do céu azul do firmamento, pregando  o evangelho contido neles; pois se há um excelente epítome do Evangelho, se encontra nos Artigos da Igreja  da  Inglaterra.  Permitam-me  mostrar-lhes  que  não  estiveram  escutando uma doutrina estranha. Temos, por exemplo, o artigo nono, sobre o pecado de nascimento,  o  pecado  original:  “O  pecado  original  não  consiste  em  seguir  a Adão (como o afirmam em vão os pelagianos), mas é a falha e a corrupção da natureza de cada indivíduo, que naturalmente é engendrada pela prole de Adão, pela qual o homem está sumamente  distanciado da justiça original, e é por sua própria natureza propenso ao mal, de tal forma que o desejo da carne é contra o Espírito; e, portanto, toda pessoa vinda a este mundo merece a ira de Deus e a condenação.E  esta  infecção  da  natureza  efetivamente  permanece,  sim,  nos  que  são regenerados; pelo qual a concupiscência da carne, chamada no grego: phronema sarkos, que alguns expõem como a sabedoria, a sensualidade, o afeto, o desejo da carne, não está sujeita à Lei de Deus. E ainda que não haja condenação para os que crêem e são batizados, contudo o apóstolo confessa que a concupiscência e  a  lascívia  têm  em  si  a  natureza  do  pecado.  Não  necessito  mis  nada.  Acaso alguém que creia no Livro de Oração discordará da doutrina que “a mente posta na carne é inimiga de Deus”?
III.  Eu  disse  que  procuraria,  em  terceiro  lugar,  mostrar  a  grande  enormidade desta  culpa.  Temo,  meus  irmãos,  que  seguidamente  quando  consideramos nosso  estado,  não  pensamos  tanto  na  culpa  como  pensamos  na  miséria. Algumas vezes tenho lido sermões sobre a inclinação do pecador ao mal, o que tem  sido  demonstrado  com  muito  poder,  e  certamente  o  orgulho  da  natureza humana tem sido muito humilhado e abatido; mas me parece que há algo que deixamos  fora,  e  que  terá  como  resultado  uma  grande  omissão,  ou  seja:  a doutrina  que  o  homem  é  culpado  em  todas  estas  coisas.  Se  seu  coração  está contra Deus,  devemos dizer que o pecado é  seu; e se não  pode arrepender-se, devemos  lhe  mostrar  que  o  pecado  é  a  única  causa  da  sua  incapacidade  para fazê-lo, (que toda sua separação de Deus é pecado), que o se manter afastado de Deus é pecado.Temo que muitos dos que aqui estamos devemos reconhecer que não acusamos nossas  próprias  consciências  desse  pecado.  Sim,  dizemos,  estamos  cheios  de corrupção. Oh, sim! Mas ficamos muito tranquilos. Meus  irmãos,  não  deveríamos  fazer  isto.  Termos  essas  corrupções  é  nosso crime,  que  deve  ser  confessado  como  um  mal  enorme;  e  se  eu,  como  um ministro  do  Evangelho,  não  enfatizasse  o  pecado  envolvido  nele,  não  teria encontrado  seu  próprio  vírus.  Teria  deixado  de  fora  a  verdadeira  essência,  se não mostrasse que é um crime. Agora, “a inclinação da carne é inimiga de Deus”. Quão grave é esse pecado! Isto se manifestará de duas formas. Considerem nosso relacionamento com Deus, e logo lembrem o que Deus é; e depois que eu houver falado destas duas coisas, vocês verão, espero, que é um pecado estar inimizados com Deus.Que é Deus para nós? É o Criador dos céus e da terra; Ele sustenta os pilares do universo. Ele com Seu hálito, perfuma as flores.  Com Seu lápis colore. Ele é o autor desta linda criação. “Somos ovelhas do seu pasto; Ele nos fez, e não nós a nós mesmos”. A relação que tem conosco é de Construtor e Criador; e por esse fato reclama ser nosso Rei. Ele é nosso Legislador, o autor da lei;  e logo, para que  nosso  crime  seja  pior  e  mais  grave,  Ele  governa  a  providência;  pois  é  Ele quem nos guarda dia a dia. Ele supre nossas necessidades; Ele mantém o ar que nosso  nariz  respira.  Ele  ordena  ao  sangue  que  mantenha  seu  curso  por  todas nossas veias; Ele nos mantém com vida, e nos previne da morte; Ele está diante de  nós  como  nosso  Criador,  nosso  Rei,  nosso  Sustento,  nosso  Benfeitor;  e  eu pergunto:  por  acaso  não  é  um  crime  de  enorme  magnitude,  não  é  alta  traição contra  o  imperador  do  céu,  não  é  um  pecado  horrível,  cuja  profundidade  não podemos medir com a sonda de todo nosso juízo, que nós, Suas criaturas, que dependemos dEle, estejamos inimizados com Ele? Mas nós podemos ver que o crime é mais grave quando pensamos no que Deus é.  Me  permitam  apelar  pessoalmente  a  vocês  em  um  estilo  de  interrogatório, pois isto tem muito peso. Pecador! Por que estás inimizado com Deus? Deus é o Deus de amor. Ele é amável com Suas criaturas. Ele te olha com Seu amor de benevolência, pois este mesmo dia Seu sol brilhou sobre ti, hoje tiveste alimento e roupas, e chegaste a esta capela com saúde e vigor. Odeias a Deus porque te ama? Essa é a razão? Considerem quantas misericórdias recebeste de Suas mãos durante  tua  vida!  Não  nasceste  com  um  corpo  disforme;  tiveste  uma  tolerável medida  de  saúde;  te  recuperaste  muitas  vezes  de  doenças.  Quando  estavas  no limiar  da  morte,  Seu  braço  deteve  tua  alma  do  último  passo  de  destruição. Odeias  a  Deus  por  tudo  isto?  O  odeias  porque  salvou  tua  vida  por  Sua  terna misericórdia? Contempla  toda Sua bondade que estendeu diante de ti! Poderia ter  te  enviado  ao  inferno;  mas  estás  aqui.  Agora,  odeias  a  Deus  porque  te conservou? Oh,  por  que  razão  estás  inimizado  com  Ele?  Meu  amigo,  acaso  não  sabes  que Deus enviou a Seu Filho procedente de Seu  peito, e O pendurou na cruz, e ali permitiu que morresse pelos pecadores, o justo pelos injustos? E, odeias a Deus por  isso?  Oh,  pecador,  acaso  é  esta  a  causa  de  tua  inimizade?  Estás  tão  longe que agradeces com inimizade o amor? E quando te rodeou de favores, quando te cingiu  com  bênçãos,  quando  te  cumulou  de  misericórdias,  acaso  O  odeias  por isso?  Ele  poderia  dizer-te  o  mesmo  que  disse  Jesus  aos  judeus:  “Tenho-vos mostrado muitas obras boas procedentes de meu Pai; por qual destas obras me apedrejais?” Por  quais destas obras odeiam a Deus? Se algum benfeitor terreno houvesse te alimentado, o odiarias? Se te houvesse vestido, o ultrajarias em sua face? Se  te  houvesse  dado  talentos,  tornarias  contra  ele  estes  poderes?  Oh,  fala! Forjarias o ferro de uma adaga  e a cravarias no coração de teu melhor amigo? Odeias  a  tua  mãe  que  te  criou  em  seus  joelhos?  Acaso  maldizes  a  teu  pai  que sabiamente velou por ti? Não, respondes, sentimos uma pequena gratidão por nossos  parentes  terrenos.  Onde  estão  seus  corações,  então?  Onde  estão  seus corações, que ainda podem depreciar a Deus, e estar inimizados com Ele? Oh, crime diabólico! Oh, atrocidade satânica! Oh, iniquidade indescritível! Odiar a Quem  é  todo  amável,  aborrecer  ao  que  mostra  misericórdia  constante, desdenhar do que bendiz  eternamente,  escarnecer  do bom, do  cheio de graça; sobretudo, odiar a Deus que enviou a Seu Filho para que morresse pelo homem! Ah!, este pensamento: “A mente posta na carne é inimiga de Deus,” há algo que nos sacode; pois é um terrível pecado estar inimizados com Deus. Quisera poder falar  com  maior  poder,  mas  somente  meu  Senhor  pode  fazê-los  ver  o  enorme mal deste horrível estado do coração.
IV. Mas há uma ou duas doutrinas que procuraremos deduzir de tudo isto. Está a mente posta na carne “inimizada com Deus”? Então a salvação não pode ser por  méritos;  tem  que  ser  por  graça.  Se  estamos  inimizados  com  Deus,  que méritos  poderíamos  ter?  Como  podemos  merecer  algo  do  Ser  que  odiamos? Ainda que fôssemos puros como Adão, não poderíamos ter nenhum mérito; pois não creio que Adão tivesse algum merecimento diante de seu Criador. Quando tinha  guardado  toda  a  lei  de  seu  Senhor,  não  era  senão  um  servo  inútil;  não tinha  feito  mais  do  que  tinha  que  fazer;  não  tinha  um  saldo  a  seu  favor,  não havia um excedente. Mas como nos tornamos inimigos, quanto menos podemos esperar ser salvos por obras! Oh, não; a Bíblia inteira nos diz, do principio ao fim, que a salvação não é pelas obras da lei, e sim pelos atos da graça.Martinho Lutero declarava que ele pregava constantemente a justificação pela fé unicamente, “porque”, dizia, as pessoas tendem a se esquecer; de tal forma que me  via  obrigado  a  quase  golpear  suas  cabeças  com  minha  Bíblia,  para  que gravassem  a  mensagem  em  seus  corações.”  E  é  verdade  que  constantemente esquecemos  que  a  salvação  é  somente  pela  graça.  Sempre  estamos  tentando introduzir uma pequena partícula de nossa própria virtude; queremos cooperar com algo. Recordo um velho ditado do velho Matthew Wilkes: “Salvos por suas obras!  É  como  se  tentassem  chegar  a  América  em  um  barquinho  de  papel!” Salvos por suas obras! Isso é impossível! Oh, não; o pobre legalista é como um cavalo cego que dá voltas e voltas no moinho; ou como o prisioneiro que sobe os degraus  da  roda  de  moinho,  e  descobre  que  não  subiu  nada  depois  de  todo  o esforço  que  fez,  não  tem  uma  confiança  sólida,  não  tem  uma  base  firme  onde possa apoiar-se. Não fez o suficiente: “nunca o suficiente”. A consciência sempre diz: “isto não é a perfeição; deveria ter sido melhor”. A salvação para os inimigos deve  ser  alcançada  mediante  um  embaixador,  por  uma  expiação,  sim,  por Cristo. Outra doutrina que extraímos disto é: a necessidade de uma mudança completa de  nossa  natureza.  É  certo  que  desde  que  nascemos  estamos  inimizados  com Deus.  Quão  necessário  é,  então,  que  nossa  natureza  tenha  uma  mudança!  Há poucas  pessoas  que  sinceramente  crêem  nisto.  Eles  pensam  que  se  clamam: “Senhor,  tem  misericórdia  de  mim”,  quando  estão  agonizando,  irão  ao  céu diretamente.  Permitam-me  supor  um  caso  impossível  por  um  momento. Imaginemos um homem que está  entrando  no céu sem uma mudança em seu coração. Ele se aproxima das portas. Escuta um soneto. Ele se sobressalta! É um hino de louvor para o seu inimigo. Vê um trono, e nele está assentado Um que é glorioso;  mas  é  seu  inimigo.  Caminha  por  ruas  de  ouro,  mas  essas  ruas pertencem a seu inimigo. Vê hostes de anjos, mas essas hostes são os servos de seu inimigo. Ele se encontra na casa de um inimigo; pois ele está inimizado com Deus.  Não  pode  unir-se  aos  cantos,  pois  desconhece  a  melodia.  Ficaria  ali parado,  silencioso,  imóvel,  até  que  Cristo  dissesse  com  uma  voz  mais  potente que  dez  mil  trovões:  “Que  fazes  tu  aqui?  Inimigos  no  banquete  das  bodas? Inimigos na casa  dos filhos? Inimigos no céu? Vá embora! Aparta-te, maldito, para o fogo eterno do inferno”!Oh!, senhores, se os não regenerados pudessem entrar no céu. Trago uma vez mais  à  memória,  o  tão  repetido  ditado  de  Whitefield:  seria  tão  infeliz  no  céu, que  pediria  a  Deus  que  me  permitisse  precipitar-me  ao  inferno  para  buscar abrigo lá. Deve haver uma mudança, se pensamos no estado futuro, pois, como poderiam os inimigos de Deus sentar-se no banquete das bodas do Cordeiro?E  para  concluir,  me  permitam  recordar-lhes  (e  depois  de  tudo  está  no  texto), que esta mudança deve ser feita por um poder superior ao de vocês. Um inimigo pode  possivelmente  converter-se  em  amigo;  mas  não  a  inimizade.  Se  ser  um inimigo fosse uma adição à sua natureza, ele poderia tornar -se um amigo; mas se  é  a  essência  mesma  de  sua  existência  ser  inimizade,  positiva  inimizade,  a inimizade não se pode mudar a si mesma. Não, devemos fazer algo mais do que podemos  alcançar.  Isto  é  precisamente  o  que  se  esquece  nestes  dias. Necessitamos  mais  pregação  com  a  unção  do  Espírito  Santo,  se  queremos  ter mais  obra  de  conversão.  Eu  digo  a  vocês,  amigos,  que  se  vocês  operam  a mudança em vocês mesmos, e se tornam melhores, e melhores, e melhores, mil vezes  melhores,  nunca  serão  o  suficientemente  bons  para  o  céu.  Enquanto  o Espírito  de  Deus  não  haja  posto  Sua  mão  em  vocês;  enquanto  não  haja regenerado o coração, enquanto não haja purificado a alma, enquanto não haja mudado o espírito inteiro e não haja feito do homem uma nova criatura,não poderão entrar no céu. Quão seriamente, então, deveriam fazer uma pausa e meditar. Eis-me aqui, uma criatura de um dia, um mortal nascido para morrer, contudo um ser imortal! Neste momento estou inimizado com Deus. Que farei? Acaso  não  é  meu  dever,  assim  como  minha  felicidade,  perguntar  se  há  uma maneira de ser reconciliado com Deus? Oh!,  esgotados  escravos  do  pecado,  acaso  não  são  seus  caminhos,  sendas  de insensatez?  Acaso  é  sabedoria,  oh  meus  amigos,  é  sabedoria  odiar  a  seu Criador? É sábio estar em oposição a Ele? É prudente desprezar as riquezas da Sua  graça?  Se  for  sabedoria,  é  a  sabedoria  do  inferno;  se  é  sabedoria,  é  uma sabedoria  que  é  insensatez  para  com  Deus.  Oh,  que  Deus  nos  conceda  que possam  voltar-se  para  Jesus  com  pleno  propósito  de  coração!  Ele  é  o embaixador; Ele é o único que pode estabelecer a paz por meio  de Seu sangue; e ainda  que  vieram  aqui  como  inimigos,  é  possível  que  atravessem  essa  porta como amigos, se não fazem senão olhar a Jesus Cristo, a serpente de bronze que foi alçada. E agora, pode ser que alguns de vocês tenham sido convencidos do pecado, pelo Espírito Santo. Eu agora vou proclamar o caminho da salvação. “E como Moisés levantou  a  serpente  no  deserto,  assim  importa  que  o  Filho  do  Homem  seja levantado,  para  que  todo  aquele  que  nele  crê,  não  pereça,  mas  tenha  vida eterna.”  Contempla,  oh  temeroso  penitente,  o  instrumento  de  tua  libertação. Volta  teus  olhos  cheios  de  lágrimas  para  aquele  Monte  do  Calvário!  Olha a vítima da justiça, o sacrifício de expiação por tua transgressão. Olha para o Salvador em Suas agonias, comprando tua alma com torrentes de Seu sangue, e suportando teu castigo em meio às agonias mais intensas. Ele morreu por ti, se confessas tuas culpas agora. Oh, vem tu, homem condenado, auto condenado, e volta teus olhos a este caminho, pois um só olhar salvará. Pecador, tu foste mordido. Olha! Não necessitas nenhuma outra coisa senão “olhar!” É simplesmente “olhar!” Basta que olhes a Jesus e serás salvo. Ouves a voz do Redentor: “Olhem para mim e sedes salvos.” Olhem! Olhem! Olhem! Oh almas culpadas

“Confia nEle, confia plenamente, Não permitas que outra confiança se intrometa; Ninguém senão Jesus Pode fazer bem ao pecador desvalido.”
Que meu bendito Senhor os ajude a vir a Ele, e lhes atraia a Seu Filho, por Jesus Cristo nosso Senhor. Amém e Amém.


Por: Charles Spurgeon
Tradução: Rosangela Cruz
Esse sermão faz parte do Volume 1 de sermões, da parte denominada NEW PARK STREET
O Original em inglês encontra-se em http://www.spurgeongems.org/vols1-3/chs20.pdf , com o titulo original The Carnal Mind Enmity Against God!Esse sermão foi traduzido da tradução de Alla Román, em http://www.spurgeongems.org/schs20.pdf
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Charles Spurgeon

Charles Spurgeon

Charles Haddon Spurgeon, referido como C. H. Spurgeon (Kelvedon, Essex, 19 de junho de 1834 — Menton, 31 de janeiro de 1892), foi um pregador batista calvinista britânico. Converteu-se ao cristianismo em 6 de janeiro de 1850, aos quinze anos de idade. Aos dezesseis, pregou seu primeiro sermão; no ano seguinte tornou-se pastor de uma igreja batista em Waterbeach, Condado de Cambridgeshire (Inglaterra). Em 1854, Spurgeon, então com vinte anos, foi chamado para ser pastor da capela batista de New Park Street, Londres, que mais tarde viria a chamar-se Tabernáculo Metropolitano, transferindo-se para novo prédio. Desde o início do ministério, seu talento para a exposição dos textos bíblicos foi considerado extraordinário. Sua excelência na pregação das Escrituras Bíblicas lhe renderam o título de O Príncipe dos Pregadores e O Último dos Puritanos.