O diálogo com Nicodemos, conhecido por todos nós, mas em geral conhecido apenas como um episódio isolado, como estamos notando agora, acontece durante a primeira estadia de Jesus em Jerusalém. Trata-se de um recorte da atuação de Jesus naquela cidade, ou melhor, é também um fruto dessa atuação. Jesus mexe com os ânimos até entre os grupos dirigentes. Nessa reflexão precisamos ter sempre em mente que a expectativa do Messias vindouro estava viva em Israel e ganhara nova intensidade sob a pressão da dominação estrangeira romana. Já por ocasião do surgimento de João Batista a pergunta era: Será que ele pretende ser o Messias (cf. Jo 1.19ss)? Ocorre que em sua pessoa e seus atos Jesus é ainda mais poderoso e envolvente que João Batista. Por isso ―muitos creram em seu nome (Jo 2.23). Por essa razão vai até Jesus um dos homens dirigentes de Jerusalém, chamado Nicodemos, que pertencia ao grupo dos ―fariseus e tinha assento e voz no Sinédrio. ― Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele. João não nos diz por que esse homem veio procurar Jesus ―de noite. Não precisa ser por causa de medo ou receio. Pelo que se vê, Nicodemos é unânime com outros líderes importantes na apreciação de Jesus, podendo declarar: ― Sabemos que vieste de parte de Deus. Então não tinha necessidade de ocultar sua visita a Jesus. É provável que naquele tempo se valorizasse muito as tranqüilas horas noturnas para manter um diálogo sem interrupções, motivo pelo qual João não considera necessária nenhuma justificativa especial da visita à noite.
Igualmente permanece em aberto a pergunta se os primeiros discípulos de Jesus, portanto, inclusive o próprio João, estiveram presentes ao diálogo. O tratamento que Nicodemos dirige a Jesus é honroso. Ele, o reconhecido teólogo, o ―mestre em Israel (v. 10), chama o homem sem estudo da Galiléia de ―Rabi. Espontaneamente reproduz a profunda impressão que ele e outros colegas do Sinédrio obtiveram de Jesus. Contudo, também neste caso não foram tanto as palavras de Jesus que o convenceram em seu íntimo, mas os ―sinais que o constrangem a ver Deus por trás da atuação de Jesus. Mais tarde, nem mesmo os mais admiráveis milagres de Jesus convenceram seus antagonistas, mas somente intensificaram seu endurecimento ao extremo (cf. Jo 9.24-34; 11.46-53). Novamente torna-se claro que ―milagres não podem ser a base vital para uma fé verdadeira. Contudo, desde já Nicodemos estabelece uma clara barreira na interpelação honrosa de Jesus, que se torna perceptível no termo ―mestre, enfaticamente posposto.
Vieste de Deus, sim; porém és apenas um grande ―mestre, nada mais que isso. Ou queres ser mais? Queres concordar com aqueles que agora estão a dizer em Jerusalém: Jesus Cristo, Jesus o Messias? Nicodemos dirige essa indagação oculta a Jesus. É sobre essa pergunta que ele pretende falar com o próprio Jesus.
Por isso Jesus ―responde, apesar de que não ter havido nenhuma pergunta direta. Jesus está completamente livre daquela autocomplacência secreta, que nos torna receptivos à interpelação honrosa da boca de uma pessoa ilustre. Jesus nem sequer se reporta à pergunta da Nicodemos. Jesus não discute com Nicodemos, mas constata objetivamente, porém com seriedade incisiva, que falta em Nicodemos a base para a decisão a uma pergunta dessas ―Jesus respondeu e lhe disse: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo (ou: for gerado do alto), não tem condições de ver a soberania de Deus.‖ Isso constitui um ataque radical ao teólogo Nicodemos. Ele e seus amigos pensam que ―conhecem‖. Como mestres de teologia e reconhecidos membros do Sinédrio, pensam que obviamente possuem o julgamento certo e reconhecem claramente a atuação de Deus com vistas a Jesus. Na realidade, eles nem possuem condições de ver a atuação soberana de Deus. Carecem do pressuposto imprescindível para tanto. O real governo de Deus está oculto ao ser humano. Nenhuma sabedoria e nenhum pensamento próprio do ser humano lhe confere percepção da atuação divina, tampouco o conhecimento teológico e bíblico, como Nicodemos certamente possuía de forma excelente. Os olhos do ser humano são abertos para Deus unicamente por meio de um processo que Jesus somente consegue comparar com ―ser gerado e ―ser nascido. Uma mera melhoria ou aprofundamento do ser humano e de seu pensamento teológico não atinge o alvo. A renovação do ser humano precisa ser ―radical, precisa ir à raiz e transformar exatamente o ponto central de sua natureza. A palavra grega ―anothen usada por Jesus pode significar tanto ―de novo como também ―de cima. No entanto, não há necessidade de nos decidirmos por um ou outro significado. É justamente essa dupla compreensão do termo que nos revela a questão em jogo. O ser humano precisa ―ser nascido de novo. Isso, porém, somente pode acontecer quando for ― gerado de cima.
Num sentido mais profundo Jesus realmente ―respondeu a Nicodemos. Ele acertou o ponto crucial que separa pessoas como Nicodemos e todos os seus amigos de Jesus. O ―farisaísmo sustentava-se pelas realizações pessoais perante Deus. Nisso ele é a configuração mais clara de toda a ―religião e ―devoção naturais. Nelas o ser humano ainda está plenamente convicto de si mesmo. Em sua essência tudo está em ordem. Basta que ainda intensifique suas realizações éticas e religiosas em uma ou outra direção. Jesus, porém, contradiz exatamente essa atitude. Ele declara a incapacidade total do ser humano perante Deus. Nesse ponto entram em jogo todo o pensamento e a vida passados de Nicodemos. É por isso que ele rejeita a palavra de Jesus como impossível, apesar de há pouco ter
saudado Jesus como o mestre que veio de Deus.
― Diz-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo ancião? Pode, porventura, voltar ao
ventre materno e nascer segunda vez? Ele ― entende mal a Jesus, mas o faz conscientemente, a fim de dessa maneira disfarçar sua discordância íntima. É por isso que ele aguça seu mal-entendido e fala do ―ancião que, afinal, não pode ―voltar ao ventre da mãe uma segunda vez e ser nascido.
Pelo mesmo motivo não se deve concluir, a partir dessa formulação, que o próprio Nicodemos tenha sido uma pessoa tão idosa.
Será que nesse ―mal-entendido, apesar da discordância consciente, não transparece também um anseio inconsciente, que pode residir até no coração de um fariseu apesar de todo convencimento pessoal? Quantas pessoas devotas e não-devotas conhecem esse anseio! Ser nascido de novo, poder mais uma vez começar radicalmente do começo, depois de todas as lutas e tribulações vãs. Tornar-se um ser humano novo por princípio, como isso seria maravilhoso! Porém – na realidade é um sonho impossível! Afinal, não se pode ―entrar ao ventre da mãe uma segunda vez e ser nascido. Não se pode começar uma nova vida. Temos de continuar sendo aquela pessoa que somos.
O que Jesus ― responde? Ele repete sua afirmação e, com o severo ―Amém, Amém, te digo caracteriza-a como imprescindível e irrevogável. Contudo, começa a explicá-la: ―Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar na soberania de Deus. Jesus cita os dois meios pelos quais o ―sonho impossível pode tornar-se real: ―água e ―Espírito. Os exegetas afirmam incansavelmente que aqui João estaria se referindo ao batismo cristão. Como, porém, num diálogo tão decisivo, Jesus poderia remeter seu hóspede a algo que ele não tinha como conhecer? Será que isso teria sido uma ―resposta autêntica? Jesus deve referir-se a uma ― água que também Nicodemos conhece. Duas vezes o evangelho fala a respeito dessa ―água: a ― água nas talhas, usada para cumprir as prescrições legais de purificação, e a ―água do batismo de João. Precisamente o farisaísmo conhecia muito bem a ―impureza do ser humano perante Deus e por isso tinha elaborado todo um sistema de preceitos de purificação. Não havia nisso um reconhecimento que precisava apenas de aprofundamento, a fim de abalar a autoconfiança de Nicodemos e abrir-lhe o coração para a grande oferta de Jesus? João Batista havia trazido esse aprofundamento da idéia da purificação. Não eram necessárias abluções isoladas, mas sim uma purificação radical de toda a pessoa, e dessa purificação careciam também os fariseus, também os proeminentes teólogos no Sinédrio (Mt 3.7). É isso que Jesus relembra a seu visitante. O ―novo nascimento começa com aquela autocondenação existente em cada pessoa que vinha até João e se deixava batizar. Com isso ela condenava toda a sua vida anterior, concordava com a necessidade de uma purificação integral e suplicava pela afirmação do perdão de Deus. Nicodemos, que consideras impossível o renascimento, estiveste com João? Deixaste que ele te batizasse? Lá no movimento do batismo, tu te submeteste ao governo soberano de Deus? É claro que isso ainda não basta. A essa ― água precisa agregar-se o ―Espírito de Deus, como o próprio Batista expressou com tanta clareza.
Não era possível e imperioso que Nicodemos também entendesse isso quando ele recordava as poderosas palavras de sua Bíblia, o AT, nem que fossem apenas Ez 36.25-27 ou Is 44.3? Em ambas as passagens Nicodemos já podia ler sobre a ligação de ― água e ― Espírito, de purificação e nova vida, como apresentada agora por Jesus. Será mesmo que Nicodemos somente tinha de rejeitar Jesus? Ele não podia perguntar sincera e abertamente se a antiga promessa ―água e ― Espírito não tinha se cumprido em João e em Jesus?
Ao mesmo tempo Jesus não apenas afirma a necessidade desse novo nascimento, mas também dá o fundamento. Afinal, a soberania de Deus não deve somente ― ser vist‖. Cumpre-nos ―entrar nela, a fim de viver nela. É aquele ―habitar com as chamas eternas e com o fogo devorador sobre o qual fala Isaías (Is 33.14). Será que a pessoa natural é capaz de suportá-lo? Para entrar no reino de Deus temos de corresponder à essência desse reino.
Contudo ― o que é nascido da carne é carne. Na Bíblia o curioso termo ― carne designa a natureza do ser humano separado de Deus e por isso impuro e frágil, sim, a essência de todas as criaturas. ― Carne, porém, não sobrevive no reino de Deus, pois a natureza de Deus é ―Espírito.
Esse termo não traz o nosso sentido atual de ― espiritualidade ou até de intelecto, mas sim da natureza santa e eterna do Deus vivo com sua força e glória. Entretanto, unicamente ―o que é nascido do Espírito é espírito‖ e por isso possui em si a natureza divina que suporta estar na presença de Deus, no governo soberano de Deus. Por isso, Nicodemos, ―não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo (ou: ser gerado do alto). De fato, ―precisa ser assim, não em virtude de uma lei exterior, porém por uma necessidade intrínseca, a partir da essência da questão. Jesus não confronta Nicodemos com uma exigência incompreensível e artificial, mas com um mistério inevitável da vida.
Esse mistério da vida, porém, é uma realidade perceptível. É o que Jesus explica ao apontar para a realidade enigmática e mesmo assim inegável do ―vento. ―O vento sopra onde quer, ouves a sua
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito. A comparação com o ―vento é especialmente plausível porque nos idiomas hebraico e grego a mesma palavra (―ruah, respectivamente ―pneuma) designam tanto ―o vento quanto ―o Espírito. ―Vento e Espírito, porém, ―sopram, vindo de lonjuras ignoradas. Nisso detêm uma liberdade imprevisível, sobre a qual nenhum ser humano pode dispor. Tão imensurável como sua origem é também a dimensão de seu efeito e o alvo de sua trajetória. Apesar disso o ―vento não é irreconhecível ou mesmo irreal. Ele tem uma ―voz que todas as pessoas ouvem, pela qual ele pode ser percebido como algo concreto. Em todas essas características o ―vento se torna a imagem do ―Espírito em sua realidade misteriosa e, apesar disso, eficaz. Nessa questão, porém, é significativo que Jesus não pensa genericamente no ―Espírito, mas no ser humano no qual se pode notar o efeito do Espírito: ―Assim, a saber, igualmente misterioso e apesar disso tão claramente perceptível, ―é todo o que é nascido do Espírito.
Agora Nicodemos formula a pergunta direta a Jesus: ―Como pode suceder isto? Ele acompanhou
Jesus no diálogo. Começou a captar a necessidade do renascimento por intermédio da geração do alto pelo Espírito de Deus. Contudo, justamente quando ele é tão imprescindivelmente necessário para ingressar na soberania de Deus a pergunta ―como acontece se torna tanto mais premente.
Evangelho de João I: comentário esperança/ Werner de Boor; Tradução: Werner Fuchs. -- Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2002.
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